Da maternidade ao fim dos idealismos conjugais. Do pesadelo social ao interior dos tabus. Estes foram alguns dos temas e dos contornos da competição deste festival. Uma fornada particularmente compacta e forte e onde o cinema espanhol mostrou um nível qualitativo invejável. José Luís Rebordinos, o diretor do festival, está a conseguir, ano após ano, elevar o cartel ao ponto de ultrapassar Locarno e incomodar Berlim em matéria de programação dos grandes festivais..2022 foi um ano dourado para o cinema espanhol, confirmando nomes e revelando outros. Uma seleção que mostrou uma safra capaz de oferecer obras de grande público mas sem nunca esquecer um dever artístico e uma intransigência intelectual nobre. No caso de Jaime Rosales e do seu Girasoles Silvestres é quase uma intransigência e exigência moral. Este drama em três tempos foi um dos grandes filmes do festival, um retrato de uma jovem em diversas fases da sua vida romântica silvestre..Julia, interpretada por Anna Castillo, é uma jovem mãe solteira de dois filhos, ansiosa por esquecer o pai das crianças, alguém que terá ficado para trás com medo da responsabilidade paternal. Mas como a sua juventude ainda se confunde com a força do desejo romântico vê-se atraída pelos homens errados, um deles um desempregado com tendências para a violência doméstica, o outro um colega seu que continua solteiro e, pelo meio, o pai dos filhos que tenta sem sucesso ser bom pai. O cineasta de A Solidão e Petra encontra sempre equilíbrio fino entre as fissuras do melodrama, seja pela inserção de um clima de tensão à flora da pele, seja por uma gestão de cenas dramáticas que nos transportam para um desespero vertiginoso. Trata-se de uma câmara atenta às questões complexas da maternidade numa sociedade espanhola particularmente cruel com os jovens sem meios e Rosales filma de perto uma ideia de errância amorosa numa lição de autenticidade desarmante..Mas de Espanha, na competição, San Sebastián aplaudiu com força outros dois títulos admiráveis, Suro, de Mikel Gurrea, e La Maternal, de Pilar Palomero . O primeiro é uma história de um casal de urbanos que se decide mudar para o campo e apostar no negócio da cortiça. Vão ser confrontados com a ameaça dos incêndios, com a emigração ilegal a trabalhar para eles e com as dificuldades do isolamento. É um filme sem bússola melodramática, algo que torna tudo mais imprevisível. Ensaio sobre os limites da conjugalidade, Suro atrai por uma precisão dramática impecável, mesmo quando encavalita os temas. Curiosamente, um filme que dialoga com a essência da mensagem de Alcarrás, de Carla Simón..Quanto a La Maternal é muito mais do que uma experiência de docuficção, é cinema bem humano construído a acreditar nos relatos reais, uma crónica de um centro de ajuda a jovens grávidas, algumas delas adolescentes, como é o caso de uma menina de 14 anos que se deixou engravidar pelo melhor amigo. Uma adolescente que dentro de si tem o fogo da música e a angústia de viver sozinha num pueblo esquecido da Catalunha. Sente-se alguma manipulação sentimental, mas, no geral, a câmara da cineasta de Raparigas consegue ser sempre verdadeira e frontal com a condição das personagens, isto entre choros e risos dos bebés, o verdadeiro coração do filme. Há muito tempo que não se via uma imersão tão real no universo da maternidade....Seja como for, o melhor filme da competição dos dias em que foi possível a cobertura do festival acabou por ser El Suplente, de Diego Lerman, realizador que filma um professor substituto numa escola argentina a tentar fazer a diferença numa escola problemática no subúrbio de Buenos Aires. Herdando uma tradição clássica do melodrama nobre de intenções com a figura do professor, El Suplente é um retrato de uma noção de generosidade num mundo cada vez mais despido de valores. Um O Clube dos Poetas Mortos mais áspero e seco, mas sempre verdadeiramente inspirado. Um filme com o coração nas mãos e que nos põe literalmente numa sala de aulas onde os alunos dizem não gostar de literatura..Na secção Perlak, as pérolas dos outros festivais, foi possível ver um dos filmes que deverá estar na corrida dos Óscares, Living, de Marcus Hermanus, remake de Ikiru, de Kurosowa. Uma pequena maravilha escrita pelo escritor Prémio Nobel Kazuo Ishiguro, perfeito a transpor a mensagem do filme nipónico para o encanto da Inglaterra dos anos 1950. Um objeto para celebrar a essência do cavalheirismo britânico e o talento de um dos maiores atores do mundo, o genial Bill Nighy..Para além dos filmes, o ambiente do festival continua a ter a mesma energia positiva de sempre: sessões a abarrotar, mesmo aquelas às 8h30 da manhã, público respeitador e as tertúlias nas tascas com os melhores pintxos do mundo. Depois, há também fãs acampados à entrada do luxuoso hotel Maria Cristina, este ano a gritarem muito por vedetas como Ana de Armas, Louis Garrel, Ricardo Darín, David Cronenberg ou Juliette Binoche. Mesmo com as praias cheias, é uma cidade a curvar-se para o seu festival, nesta altura logo depois de Cannes, Veneza e Berlim o maior da Europa e em pleno crescimento. Sim, este ano festejou-se a edição 70 mas há um fulgor novo.."Quer a indústria quer os artistas pelam-se por estar neste festival", começa por contar Brigitta Portier, uma das mais reconhecidas publicistas do cinema internacional e adianta que para a sua empresa, a Alibi, a presença em Donostia é importante: "o festival tem também muita imprensa internacional, deixa rasto...E o seu timing é muito bom, em especial para os produtores lançarem aqui o seu produto. Por exemplo, este ano ajudámos a lançar o filme dinamarquês Forever - tínhamos boas expectativas mas na realidade elas foram bastante ultrapassadas a nível de interesse da imprensa"..Na Tabalakera, o centro cultural da cidade e onde o festival tem a sua sede, está patente a exposição de fotografias dos 70 anos do festival. Imagens e vídeos misturados numa lógica algo aleatória e sem querer contar uma história, apenas fazer desfilar rostos e vaidades. Ainda assim, Joaquim de Almeida e José Saramago aparecem com destaque no slide-show..Paul Kircher.Já há muito que o cinema francês não descobria um rosto masculino com um sorriso e uma força tão encorpada. Aos 20 anos, eis Paul Kircher, a próxima estrela gaulesa, um príncipe gay em Le Lycéen, auto-retrato de Christophe Honoré à sua adolescência e ao fascínio pela primeira aventura sexual em Paris. Este menino descoberto ainda mais adolescente em T'as Pécho? e agora é um corpo livre em transe num filme que vai do sol musicado pelos OMD a uma zona negra onde passa a sombra do luto e do suicídio. E entre ele e a tenacidade da mãe Juliette Binoche há qualquer coisa de orgânico. Paul Kircher vai ser um caso muito sério mas era bom ninguém lhe roubar uma evidente alegria de estar vivo!.Carla Quilez.A atriz de 14 anos que espantou o Kursal (a sala grande do festival que prestou um das maiores ovações dos últimos anos no festival). Chama-se Carla Quilez e é uma descoberta fulgurante de Pilar Palomenro, autora de La Maternal, encontro entre a ficção e o real num drama sobre um grupo de adolescentes grávidas que vivem juntas num centro de ajuda verdadeiro. Carla é a protagonista, criança a ficar mulher que chegou ao filme por uma diretora de casting a ter descoberto a dançar reguetón. Quando dança transforma-se, cresce e torna-se adulta. Mas é nas cenas íntimas com um bebé ao colo que é capaz de mostrar um rol de emoções tão complexas como arrepiantes..Romeu Runa.Um corpo que dança num filme de zombies tristes em terra triste. O corpo é de Romeu Runa, nome da dança nacional que Marco Martins transformou em ator de ar de rua, um rosto carregado e um corpo seco. É uma descoberta frontal de Great Yarmouth - Provisional Figures e onde interpreta um cúmplice de um esquema de Tânia, a personagem de Beatriz Batarda. Runa consegue personificar uma aura de falhado. E o seu desespero é muito português looser, é uma pena Jorge Silva Melo já cá não estar para se maravilhar com um talento destes. Que o cinema português continue a insistir neste rosto que é também corpo..O realizador português responsável por Great Yarmouth - Provisional Figures, crónica de uma tragédia de emigração portuguesa na Inglaterra de fiasco social e humano, Marco Martins, fala da presença do filme em competição..Aconteça o que acontecer neste palmarés a presença do filme no festival já é uma vitória? Claro que é! Mas trata-se sobretudo de estrear um filme que está há cinco anos no forno, mesmo tendo terminado a montagem apenas há dois meses...Sou daqueles que continuo sempre a mexer na montagem. Vou sempre continuando mas agora o filme ganhou a vida. Quanto aos prémios, isso diz mais do júri do que do filme..Viu muitos filmes e terá percebido que a competição este ano é forte... Muito forte mesmo, vi filmes belíssimos. É um ano particular, muitos destes títulos estavam presos pela pandemia..O Marco conhece a Beatriz Batarda desde a infância e passou a vida a trabalhar com ela mas o que ela faz aqui é outra coisa, não concorda? Cheguei a um sítio com a Beatriz muito particular, algures entre o risco e a aventura..Passa pelo desconforto? Também! É como se tivéssemos a caminhar em direção a um vulcão ou a um abismo e as coisas depois corressem muito bem! (risos) E a pressão da covid, na rodagem, não foi fácil, mas acabou por ser infeliz para nós e feliz para o filme. Essa tensão foi útil.