Salvador Sobral enfrentou Brel, o "gajo que é uma obra de arte"
Salvador Sobral não teve em nenhuma das canções que interpretou no palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB) os 15 minutos de aplausos que o seu novo ídolo, Jacques Brel, recebeu quando apresentou pela primeira vez Amsterdam há várias décadas. 15 minutos não é coisa fácil para nenhum cantor, mesmo que alguma das canções tenham recebido muitas palmas e La Chanson des Vieux Amants uma imensa ovação, porque foi dos momentos mais à medida de um público que encheu por completo a sala e que o cantor quase tentou seduzir até à exaustão.
Quase, porque Salvador Sobral não quis copiar Brel e fez a sua versão de sucessos que - sabe-se bem - só o cantor belga pode interpretar. Não sendo um imitador, apesar de se apresentar com uma pronúncia de um francês excecional para que tem 30 anos e nasceu na época do inglês, Sobral cedeu à sua formação de jazz sempre que pôde. Nada que desiludisse uma plateia em que se misturavam os fãs saudosos de Brel e os do herói da Eurovisão e que aplaudia freneticamente sempre que o cantor terminava um dos 18 temas que interpretou esta sexta-feira no CCB e leva hoje à Casa da Música no Porto e segunda a Aveiro.
O alinhamento foi escolhido a dedo, deixando de lado algumas canções que a voz muitas vezes apressada de Salvador Sobral não deve apreciar, como Le Plat Pays. Nada que se possa criticar pois Brel tem um leque de 'sucessos' que não cabem num único espetáculo e a seleção de Sobral foi boa.
No CCB ouviu-se a abrir J'Arrive. Uma boa escolha, em que logo se pressentiu que Sobral estava muito entusiasmado. Demasiado gestual, distraía os espetadores com as mãos irrequietas e, estranhamente, a imitar que tocava uma guitarra elétrica... Um entusiasmo que soube aproveitar bem na última canção, Madeleine, onde mobilizou o público com uma boa encenação, obrigando a virar as centenas de cabeças para ver por onde andava o cantor de megafone na mão a percorrer o auditório.
Seguiu-se Quand on a que l'amour e Les Paumés du petit Matin, que permitiram sonhar com uma evocação de Brel mais tradicional. Salvador Sobral vestia-se como a imagem que temos do cantor belga, de destacar o adereço da camisa de gola alta, e onde o cantor deu o tempo certo às palavras dos poemas originais. Noutras, diga-se, replicou o cantar em tropel de Brel como se fosse uma espécie de rapper.
A primeira surpresa surgiu com Isabelle, um tema menos conhecido de Brel e que Sobral aproveitou para se situar no amor pelas canções do belga. Quem ainda não tinha tido tempo para olhar bem o cenário, viu que tentava reproduzir os ambientes dos cafés parisienses da época dourada da chanson, uma quase cave com um fumo branco a imitar o dos cigarros que todos fumavam abundantemente. Um cenário que confirmava já que o jazz se iria impor, ao poder perceber-se que uma banda composta Samuel Lercher ao piano, Inês Vaz no acordeão e Joel Silva na bateria não poderiam contrariar o domínio das cordas de Nelson Cascais, André Santos e Ana Cláudia Serrão, bem como o trompete e flautas de Diogo Duque, tão ao gosto de Salvador Sobral. Uma banda a que não se pode apontar nada, tão bem que estiveram e colaboraram. Até mesmo quando se sentaram todos numa mesa na lateral do palco e imitaram um encontro de amigos num café...
Após Le Moribond, os fãs mais antigos de Brel ficaram satisfeitos com boas interpretações de Les Bonbons e Les Bourgeois, Vesoul e Jef. Pelo meio ficou o momento mais questionável com Mathilde, numa espécie de samba ou rumba(?) e a seguir a Ces Gens Là e Bruxelles, sendo que nesta Sobral pôde exaltar em palco o lado excêntrico que tanto ele tem como Brel tinha. E desagua-se no tal ponto alto, La Chanson des vieux amants, para fechar mais à frente com La Chanson de Jacky.
Mas havia mais três temas, nada que ninguém soubesse pois Salvador Sobral desvendou que o encore estava preparado. Au Suivant superou a entrega a solo de Sobral em Ne me quitte pas, 'coisa' muito difícil de superar e que necessita de mais marcação à Brel ou não passa. No entanto, esse era um tema que todos queriam ouvir, até os poucos franceses e belgas que levantaram a mão quando o cantor quis saber se havia cidadãos destes países presentes.
Não foi um Brel à portuguesa que se ouviu no CCB, antes um Salvador Sobral que teve coragem para mexer em canções intocáveis. Que teve uma banda muito bem comportada, capaz de reproduzir pequenos pormenores das gravações originais que transportavam o espetador para o original, de exibir diálogos entre o trompete e o violoncelo inesperados, um acordeão e uma bateria perfeitos e um piano omnipresente. Aliás, Brel sem piano não existe.
Salvador Sobral gosta de falar sem baias, e fê-lo de vez em quando durante Salvador Sobral Canta Brel. O momento de maior "sinceridade" foi quando disse que "só descobriu aos 28 anos este gajo, que é uma obra de arte e a quem nós fomos destruir a perfeição. Espero que ninguém tenha ficado ofendido". Não ninguém ficou aborrecido, afinal há poucos cantores por cá capazes de ter coragem para enfrentar Brel.