Rui Mateus: de homem da mala a maldito
Ilustração Vítor Higgs / DN

Rui Mateus: de homem da mala a maldito

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Esta é mesmo uma prova de vida (ou uma tentativa de sê-lo), pois, no rigor do rigor, ninguém sabe ao certo onde está, e se está, o cidadão Rui Mateus, nascido na Covilhã aos 16 de Abril de 1944 e, portanto, hoje com 80 anos. Há mais de 20 anos, o Público tentou encontrá-lo, sem êxito, e todos os fundadores do Partido Socialista contactados por aquele jornal disseram desconhecer o seu paradeiro (cf. Público, de 19/4/2003). Pela mesma altura, coincidente com o vigésimo aniversário do PS, o Correio da Manhã perguntava “Onde Está Rui Mateus?”, estranhando que ele não tivesse sido convidado para o almoço celebratório da fundação do partido. Um elemento do secretariado do PS afiançava que o seu nome não fora, de modo algum, eliminado do historial socialista e que até constava da lista de fundadores do PS patente no Largo do Rato. Simplesmente, garantiram, ignorava-se onde morasse, dizendo uns que residia na Suécia (país onde vivera antes do 25 de Abril e terra natal da sua mulher Gunilla), asseverando outros que se encontrava a dar aulas nos Estados Unidos (país com quem manteve especiais relações enquanto dirigiu as relações internacionais do PS). 

De certo e sabido, é líquido que desapareceu para parte incerta, não sem antes ter aparado aquele inenarrável e fabuloso bigode-mariachi com que surge em inúmeras fotografias ao lado de inúmeras personalidades mundiais de primeiro plano, ou plana, tais como Sua Santidade Paulo VI (e Sua Santidade João Paulo II), Ronald Reagan e George Bush (ambos na Casa Branca), o ladino Yasser Arafat, o malogrado Issam Sartawi, da OLP (foto tirada em Vilamoura, na véspera de este ser baleado no átrio do Hotel Montechoro), o não menos malogrado Bernt Carlsson (sueco e dirigente da Internacional Socialista, uma das 270 vítimas do atentado de Lockerbie), o rei D. Juan Carlos de Bourbon (também ele autoexilado no estrangeiro à conta de um escândalo de corrupção), o senador Ted Kennedy e, enfim, tudo quanto era a crème de la crème da socialistada europeia e mundial das décadas de 70 e 80, de Mitterrand a Willy Brandt, passando por Helmut Schmidt, entre outras trutas. 

As fotografias congratulatórias, claro está, fazem parte do livro-bomba Contos Proibidos - Memórias de um PS desconhecido, que Rui Mateus deu à estampa, com a chancela das Publicações Dom Quixote, de Nelson de Matos, em Janeiro de 1996. A obra, com uma colossal tiragem de 30 mil exemplares, esgotou no próprio dia em que foi lançada aos escaparates das casas livreiras, mas, e apesar desse sucesso instantâneo (diz a Wikipédia que caso único na história das letras lusas), nunca mais foi reeditada, estranhamente, sendo hoje considerada uma raridade bibliográfica, pela qual chegam a pedir no OLX coisa de 50 euros, ou mais. 

Mário Soares, o principal visado no livro, jurou que nunca o leu (por exemplo, no livro-entrevista com Maria João Avillez, Soares, 1996, pp. 162-163) e, em Um Político Assume-se - Ensaio Autobiográfico, Político e Ideológico, de 2011, afiançou mesmo que ele não teria sequer sido escrito por Mateus, já que este não sabia “minimamente escrever.” Não ficaram por aqui as farpas do ex-Presidente, algumas bem dolorosas, referindo-se Soares a “um fundador do PS, de poucas letras, mas que falava bem inglês, que conheci em Londres, onde era empregado num restaurante.” “Levava-me as pastas de vez em quando”, carrega Soares, o qual, segundo o testemunho de alguns dos seus próximos, como José Manuel dos Santos, não terá ficado especialmente agastado com a saída do livro, pois este “não tinha nada de muitíssimo grave, era conversa de porteira” (cf. Pedro Dórdio, “Os livros malditos da democracia portuguesa”, Observador, de 31/1/2021). 

Não é isso que transparece, de modo algum, do depoimento que Soares prestou a Joaquim Vieira para o livro Mário Soares - Uma Vida, de 2013, dizendo o jornalista-biógrafo que, em conversa, o ex-Presidente dirigiu-se “de forma áspera” ao seu antigo homem de mão, mimoseando-o com “impropérios irreproduzíveis”, dos quais Vieira só reproduziu os mais suaves, a saber: “um palerma” e “um borra-botas.” Do best-seller, Soares entendia ser “uma pepineira sem nome: é um livro feito ad hominem para me lixar. Aquilo foi uma vergonha. O gajo nunca mais apareceu em público, ninguém sabe onde é que ele está nem o que faz. Ainda bem. Desapareceu, pronto. Era um palerma.” Mateus, acrescenta Soares, era “um tipo simpático”, “mas depois começou a achar que podia ser ministro dos Negócios Estrangeiros - e foi aí que começou a minha questão com ele. Um dia veio falar-me disso: ‘Ah, agora é a altura de eu ser ministro dos Negócios Estrangeiros.’ E eu disse-lhe: ‘Ó Rui Mateus, tu és quase analfabeto, mal sabes ler e escrever. Como é que queres ser ministro dos Negócios Estrangeiros?’.” Na crua explicação de Soares, fora a amante de Mateus que o pusera a sonhar tão altos voos: “quem lhe criou a expectativa foi a amante dele, que era secretária e queria ser mulher do ministro”, hipótese corroborada por Bernardino Gomes, para quem Mateus tinha “uma namorada (não a mulher, que era sueca) que era ambiciosa” e que o precipitou na desgraça: “começa-se a vê-lo comprar coisas extravagantes, a fazer uma vida que ele não tinha dinheiro para fazer, coisas desse género, que eram óbvias - não podia ser” (cf. Joaquim Vieira, ob. cit., p. 638).     

O facto é que, apesar de “borra-botas”, “palerma” e “quase analfabeto”, Rui Mateus, ou alguém por ele, escreveu um dos livros-sensação do regime e, segundo se diz, houve mesmo o projecto de publicar um outro, porventura ainda mais cáustico e pesado. Ao que parece, foi desaconselhado de o fazer pelo seu advogado, Germano Marques da Silva, ainda que este pouco se recorde disso: “Não me lembro de ter desaconselhado o Dr. Rui Mateus de escrever um segundo livro, embora admita que o possa ter feito. Findo o processo terei porventura considerado que era tempo de enterrar o assunto até porque a publicação de um novo livro iria provavelmente suscitar mais processos e abrir feridas que a demora na tramitação do processo tinha amenizado.” Sobre o seu antigo constituinte, a eterna nota de mistério: “Há mais de cinco anos que não tenho qualquer contacto com o Dr. Rui Mateus. Nem sequer sei onde vive. Julgo que vive na Suécia, mas não tenho a certeza. O Dr. Rui Mateus decidiu pôr uma pedra sobre o passado depois de um processo que durou cerca de 20 anos. Desconheço todas as razões, mas julgo que se considerou vítima da justiça e da política.” (cf. Pedro Dórdio, ob. cit.; cf. tb. Enrique Pinto Coelho, “O livro que vendeu 30 mil e desapareceu”, jornal i, de 1/9/2009).  

O então procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, que também garante não ter lido o livro de Mateus, nomearia um magistrado para analisá-lo à lupa, mas daí não resultaram processos, nem para os nomes nele visados nem para o autor da obra, o qual, contactado a este propósito pelo Expresso, de 14/12/2006, respondeu por e-mail: “Nunca fui chamado ou ouvido para prestar quaisquer declarações ou esclarecimentos, apesar das questões mencionadas no livro poderem ser - e terem sido, por muitos - consideradas graves.” 

A obra, é óbvio, circula hoje pela Internet, em formato PDF, em blogues como o Aventar ou sites como o Tugaleaks, e é recorrentemente usada como arma de arremesso contra o PS, como sucedeu num artigo de Filipe Charters de Azevedo no Dinheiro Vivo, de 1/5/2023 (“E 50 anos para não esquecer que a luta continua”), noutro de Helena Matos no Observador, de 20/11/2022 (“Precisa-se manual de boas maneiras para criticar o PS de forma correcta”), ou noutro ainda de António Pina do Amaral no jornal O Diabo, de 29/11/2009 (“O amigo americano: Rui Mateus, o homem que sabe demais”) (cf. ainda, num registo diferente, Ana Sá Lopes, “Macau, o maior embaraço da vida política de Soares”, Nascer do Sol, de 7/1/2017). 

De resto, a questão do “fax de Macau” - no fundo, o ponto mais fulcral e escaldante de Contos Proibidos - fora logo utilizada na campanha presidencial de 1991, já que a notícia bombástica de O Independente, dando conta da alegada corrupção do governador de Macau, Carlos Melancia, surgira não muito antes e, claro, foi lançada pelo candidato Basílio Horta num aceso debate televisivo com Mário Soares, a quem aquele chamou de “o padrinho.” Na recordação de Soares: “Basílio Horta (…) aproveitou os debates televisivos para atingir a minha idoneidade pessoal. Cortei relações com ele, porque uma tal acusação - feita a uma pessoa que se orgulha de ser impoluta, como eu - não se perdoa. Bastantes anos depois, pediu-me desculpa e fizemos as pazes.” A reconciliação foi tão calorosa e amigável que, em 2013, Mário Soares surgiria, ao lado de Jorge Sampaio e de Freitas do Amaral, na comissão de honra da candidatura à câmara municipal de Sintra por parte de Basílio Horta, entretanto mudado para o PS.  

Hoje, o que foi o caso do “fax de Macau” pouco dirá às gerações mais novas: por um lado, poucos usam o telefax; por outro, Macau já não nos pertence. Na época, porém, foi um escândalo sem precedentes, dos maiores da história da democracia, porventura o maior. E tudo começou, como sabem os mais idosos, pela seguinte história, aqui assaz resumida: no âmbito da construção do novo aeroporto de Macau, uma empresa alemã, a Weidleplan, terá efectuado um pagamento à empresa Emaudio no valor de 50 mil contos (sensivelmente 250 mil euros, ao câmbio de hoje). Como os trabalhos do aeroporto foram atribuídos a uma empresa concorrente, a Aéroports de Paris, os alemães quiseram a devolução do dinheiro, cabendo explicar que os sócios da Emaudio eram, entre outros, Rui Mateus, Strecht Monteiro, Menano do Amaral e João Tito de Morais, antigo homem de confiança de Soares na RTP e na ANOP, que então dirigia a CEIG, a cooperativa que editava e imprimia as publicações do PS, como o Acção Socialista e o Portugal Socialista, e era proprietária do Autosport e do Blitz! Mateus aconselharia Strecht Monteiro a dizer aos alemães para enviarem um fax a Melancia, pedindo a massa de volta, coisa que aqueles fizeram, sem qualquer resultado. Mateus decide, então, numa decisão kamikaze, entregar uma cópia do malfadado fax à jornalista Helena Sanches Osório, de O Independente, que largou a bomba (mas, depois, acabou por surgir como testemunha de acusação do próprio Mateus…). 

Em face da notícia de O Independente, Cunha Rodrigues mandou instaurar um inquérito, a cargo de Rodrigues Maximiano. Tendo este elaborado a sua acusação, Cunha Rodrigues foi a Belém, comunicar ao Presidente que um dos implicados era Melancia. Mário Soares começou por recebê-lo com bonomia, mas, ao ouvir o nome do governador de Macau, explodiu dizendo “O senhor só se mete com os meus amigos!”, entre outras “imprecações”, nas palavras eufemísticas do antigo procurador-geral, que se abstém de as reproduzir e conclui, tão-só: “confesso que me senti constrangido.” (cf. Memórias Improváveis. Os longos anos de um procurador-geral, 2020, p. 148).  

Seguiu-se uma enorme embrulhada, política e judicial, e, no final, Carlos Melancia acabou absolvido, num processo separado, mas os arguidos do “caso Emaudio” foram condenados a prisão efectiva, na casa dos dois anos de cadeia. Nas palavras sibilinas de Cunha Rodrigues, “a opinião pública digeriu com justificada perplexidade o facto de, no primeiro julgamento, o Tribunal ter condenado os arguidos por terem corrompido o Governador e, no segundo, a Justiça (outro Tribunal), ter absolvido o Governador, por considerar não ter sido corrompido” (ob. cit., p. 149, itálico acrescentado). A terminar, Cunha Rodrigues afirma, novamente enigmático, “tenho razões para pensar que [Mário Soares] nunca esqueceu o caso de Macau”, referindo que o ex-Presidente sempre primou pela ausência nas diversas homenagens públicas que lhe foram prestadas, invocando invariavelmente inadiáveis motivos de agenda.     

Em verdade, o nome de Mário Soares acabou por ser chamado à baila no “caso do fax”, mas nada mais do que isso. De resto, Soares sempre garantiu nunca ter tido conhecimento prévio do famigerado fax, ainda que, muitos anos mais tarde, Almeida Santos tenha dito, sem tirar nem pôr, que “Mário Soares teve conhecimento prévio do fax de Macau. Era uma situação complicada, punha problemas ao PS - ele tinha de ter conhecimento” (cf. Joaquim Vieira, ob. cit., p. 633). 

Quanto a Melancia, cuja inocência Soares sempre defendeu, foi obrigado a demitir-se após uma audiência no Palácio de Belém que adivinhamos tempestuosa e, pese os elogios do ex-Presidente, acabou por acusar este último, e cita-se, de o ter “atraiçoado”: “Senti-me atraiçoado. Percebi que ele [Soares] estava dedicado a assegurar a sua reeleição e que isto era um problema que dispensava” (cf. Fernando Esteves, Jorge Coelho, o Todo-Poderoso, 2014, p. 104). Nove anos depois, no dia em que foi absolvido, Soares ligou-lhe, mas Melancia mandou dizer que não estava. 

Rui Mateus, de seu lado, optou por autoimolar-se através de um best-seller escandaloso, prenhe de acusações a Soares e à forma como este liderava o PS tratando-o como propriedade sua - e ao exclusivo serviço dos seus interesses. Segundo Mateus, o líder socialista “tinha uma poderosa rede de influências sobre o aparelho de Estado através da colocação de amigos em postos-chave, escolhidos não tanto pela competência, mas porque podem permitir a Soares controlar aquilo que, efectivamente, nunca descentralizará - o poder” (ob. cit., pp. 151-152); “para ele, o Partido Socialista não era um instrumento de transformação do País baseado num ideal generoso, mas sim uma máquina de promoção pessoal” (p. 229) e, mais ainda, existiam “duas faces: a do Mário Soares afável, solidário e generoso e a outra, a do arrogante, egocêntrico e autoritário” (p. 237).  

Na SIC, Miguel Sousa Tavares entrevistou Rui Mateus de forma hostil, começando por perguntar-lhe “como é que se sente na pele de um traidor?” e o editor do livro explosivo, Nelson de Matos, disse não ter sofrido ameaçados, mas sido alvo de “comentários negativos”, que lhe causaram “bastantes dificuldades pessoais.” Anos volvidos, e entrevistado pelo jornal i, Joaquim Vieira diria, em 2009, que “o livro adianta imensos detalhes que reforçam a sua credibilidade e nenhum deles foi alguma vez desmentido”, enquanto, na mesma ocasião, Bernardo Pires de Lima considerou: “parece-me evidente que [o livro] desapareceu de circulação rapidamente por ser um documento incómodo para muita gente, sobretudo altas figuras do PS, metidas numa teia de tráfico de influências complicada, que o livro não se recusa a revelar com documentos”. Por isso, teve um destino semelhante a uma outra obra - e outra raridade bibliográfica -, Dicionário Político de Mário Soares, de Pedro Ramos de Almeida, que a Caminho editou em 1985, uma resenha das contradições políticas do candidato a Belém, retirada prudentemente dos escaparates quando o PCP apoiar Soares na segunda volta das presidenciais de 86.   
    
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Hoje, à distância de tantos anos, percebe-se que o caso do “fax Macau” - e o sinuoso comportamento das diversas partes envolvidas - não deve, nem pode, ser avaliado na perspectiva de um juízo moral, já que, sob esse ponto de vista, todos dali saem mal, mesmo muito mal: Soares, por ter acabado a chamar “borra-botas”, “palerma” e semianalfabeto a um homem que antes colocara a dirigir as relações internacionais do PS e a presidir ao conselho directivo da Fundação Luso-Americana; Melancia, por só ter ousado falar da “traição” de Soares muitos anos depois do ocorrido, quando o ex-Presidente se encontrava já na recta final da sua vida; e Rui Mateus, é evidente, por ter calado durante décadas aquilo que considerava serem as peculiaridades de carácter do seu chefe, ocupando alegremente, pela sua mão, sucessivos cargos no interior do PS ou na sua órbita. 

Com pouco relevo moral, já que de moral teve pouco ou nada, e escasso interesse político, já que hoje tudo está morto, ou quase, Contos Proibidos reveste-se, sobretudo, de um indiscutível valor histórico, mesmo que descontemos, e muito, o facto de ter sido escrito como gesto de vingança, sendo, por isso, um livro naturalmente parcial e enviesado. Quanto aos factos nele relatados, não foram até hoje desmentidos por nenhuma das personalidades citadas - e são muitas -, o que não significa, obviamente, que sejam necessariamente verdadeiros. Uma apreciação desapaixonada e isenta, independente, deve ater-se menos à floresta de pormenores, muitos dos quais escabrosos, que são referidos naquele livro maldito, e mais à big picture que dele resulta, um retrato inigualável sobre a génese de um dos partidos fundadores da democracia portuguesa e sobre o lançamento da sua extensa e preciosa rede de contactos internacionais, na Internacional Socialista e não só (até Kadafi, garante Mateus, foi um dos financiadores do PS no pós-25 de Abril). Por ali percebe-se quão difícil foi a vitória dos mencheviques portugueses sobre as tentações totalitárias do PCP e da extrema-esquerda, como se percebe o modo como o PS beneficiou, e muito, da vaga socialista ou social-democrata que então percorria a Europa (a RFA de Brandt e de Schmit; a Áustria de Bruno Kreisky; a Bélgica; a Dinamarca; a Finlândia, o Reino Unido de Harold Wilson e James Callaghan; a Holanda de Joop den Uyl; Israel; o Luxemburgo; a Noruega; a Suécia de Olof Palme) e como isso lhe permitiu tornar-se um “partido de poder” com extensas ramificações no aparelho de Estado, na comunicação sindical, no sindicalismo e nas autarquias, no inefável “mundo da cultura.” 

O facto de a motivação do autor ao escrever este livro não ter sido das melhores nem mais nobres, bem longe disso, não deve levar-nos a descartá-lo por inteiro, até porque há nele dados factuais incontroversos, que não só complementam, e por vezes contrariam, a historiografia oficial do partido como hoje, sobretudo hoje, se afiguram deveras surpreendentes. 

Um deles, curiosíssimo, tem a ver com contactos havidos, por sugestão de Frank Carlucci, com a empresa de lobbying de Paul Manafort (a Black, Manafort & Kelly), a qual, para a campanha presidencial de Soares, em 1986, terá sugerido, inclusive, “plantar” no The New York Times uma notícia falsa sobre as ligações de Freitas do Amaral ao KGB (!). Após o triunfo de Soares sobre Freitas, Manafort telefonou a Mateus, em êxtase, dizendo-lhe “como vês, o segredo era Pintasilgo. Well done anyway!”, com isso querendo afirmar que a candidatura da ex-primeira-ministra fora decisiva para dividir os votos à esquerda e, acima de tudo, para impedir a passagem de Zenha à segunda volta. Rui Mateus assevera ainda que as ligações de Manafort à Casa Branca conseguiram que, no discurso de Ronald Reagan na Assembleia da República, em 1985, fossem retirados quaisquer elogios ao Presidente Ramalho Eanes, reservando o Presidente americano, em Sintra, uma palavra de apreço para o primeiro-ministro Soares. Paul Manafort, como é sabido, além de trabalhar para ditadores de todo o mundo, acabou preso por mil e uma tropelias, tentando agora o seu regresso in aperto à campanha de Donald Trump (cf. Cátia Bruno, “Manafort, Soares e Dias Loureiro. Os laços a Portugal do homem de Trump que se move na sombra”, Observador, de 19/9/2017).  

Outro facto, igualmente surpreendente, sobretudo com o que actulmente sabemos das três personagens em causa, tem a ver com Silvio Berlusconi, com Rupert Murdoch e com Robert Maxwell. Todos vieram a Portugal quando o PS pensava aventurar-se na comunicação social, aproveitando os recursos das fundações a ele ligadas e os fundos sobrantes do MASP (Movimento de Apoio Soares à Presidência). Berlusconi esteve cá, foi recebido em Belém, reuniu com Mário e João Soares em Nafarros, os homens da Emaudio viajaram até Milão, a convite do patrão da Mediaset, visitaram-no no seu magnífico palácio de Arcore. Por sua vez, Rupert Murdoch, o magnata da News Corporation, também veio a Portugal, onde, entre outras coisas, pediu para comer lagosta num restaurante de Paço d’Arcos e quis encomendar um serviço da Vista Alegre para a sua mulher. O triunfador acabaria por ser Robert Maxwell, com quem Soares logo estabeleceu uma relação muito próxima, fruto de ambos serem amigos de Mitterrand, de Maxwell falar francês e, sobretudo, acima de tudo, de saber massajar o inflamado ego do Presidente português, a quem chamou, entre outros mimos, “camarada de luta.”

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O homem no epicentro deste tufão, Rui Fernando Pereira Mateus de seu nome, nasceu na Covilhã, como se disse, em Abril de 1944, não sendo, de modo algum, um “borra-botas”, pelo menos na acepção classista com que este termo é geralmente usado. Seu pai era um comerciante daquela cidade que se associou a uma empresa de tecelagem que, graças à nossa adesão à EFTA e mercê da sua actividade exportadora, conheceu grande prosperidade. Rui cresceu então num ambiente burguês da classe média salazarista, sendo seu pai um católico devoto e, em jovem, militante na Legião Portuguesa, o que não impediu Rui de, no final dos anos 50, conviver com os oposicionistas covilhanenses, uns próximos do PCP, outros velhos republicanos. Como era frequente, o irmão mais velho de Rui foi estudar para Lisboa, pois na Covilhã o liceu local não ia além do segundo ano. Rui quis seguir-lhe no encalço, mas, entretanto, o liceu da Covilhã aumentou a sua oferta lectiva, o que o fez permanecer na casa paterna até aos 17 anos, não sem antes se ter envolvido numa briga de rapazes com o filho de um deputado da União Nacional e, na mesma linha anti-regime, de ter acompanhado a caravana do candidato Humberto Delgado naquela terra serrana.    

Aos 17 anos, e seguindo as pisadas do irmão mais velho, obteve uma bolsa do American Field Service (AFS) para estudar e viver com uma família norte-americana em Cedar Rapids, no coração do Iowa, Médio-Oeste profundo. Foi, muito provavelmente, a experiência mais marcante e formativa da sua vida, através da qual se familiarizou com a língua inglesa, um trunfo precioso na sua carreira política futura, e, mais do que isso, pôde conhecer as delícias de viver num país democrático, livre e desenvolvido. Pela TV, assistiu, fascinado, à campanha presidencial de John Kennedy, em 1961, e, no ano seguinte, pôde mesmo conhecê-lo - ou, melhor dito, apertar-lhe a mão - no decurso de uma recepção nos jardins da Casa Branca, que a Presidência organizava todos os anos para os bolseiros finalistas do American Field Service. A par de Olof Palme e Leopold Senghor, diz Rui, Kennedy tornar-se-ia uma das principais figuras de referência dos seus verdes anos, datando daí, também, uma especial atracção e ligação aos EUA, a qual, no pós-25 de Abril, acabou por revelar-se decisiva para Mário Soares e para os socialistas portugueses. O AFS cumpria, assim, um dos seus objectivos, particularmente nos tempos da Guerra Fria: projectar o poder e a influência da América e formar jovens quadros empenhados na defesa do Ocidente, dos seus valores e do seu modo de vida. 

Chegada a idade de ir à tropa - e não querendo permanecer mais nos EUA, para evitar, segundo diz, ser chamado à guerra do Vietname -, Rui veio fazer a inspecção a Portugal, mas logo a seguir obteve uma salvífica autorização para viajar até Inglaterra, de onde não regressou. Fugido às guerras, a do Vietname e a de África, conviveu de perto com os grupos oposicionistas da capital britânica, os quais tinham no jornalista António Figueiredo a sua figura mais emblemática e tutelar. Graças aos contactos deste no Partido Trabalhista, Mateus pôde lançar, no início de 1970, o primeiro núcleo organizado da Acção Socialista Portuguesa (ASP) em Londres, trabalho em que se envolveu em conjunto com Alberto Lagoa, Carlos Alves, Pedro Ferreira de Almeida. Eduardo Silva e, mais tarde, Áurea Rego, José Neves e Seruca Salgado. Entretanto, a ASP ia urdindo a sua teia: em Roma, Tito de Morais e Gil Martins; em Paris, Mário Soares, Francisco Ramos da Costa, Coimbra Martins, Liberto Cruz e, mais tarde, Jorge Campinos; na Bélgica, Bernardino Gomes; na Suíça, Fernando Loureiro; na Alemanha, Carlos Novo, Desidério Lucas do Ó, Carlos Queixinhas e Gomes Pereira.  

Em 1972, Rui Mateus foi viver para a Suécia, onde lançou um núcleo da ASP junto dos metalúrgicos da construção naval dos estaleiros da Kockums. Foi lá também que conheceu a sua mulher, Gunilla, a quem, aliás, dedicaria Contos Proibidos (“À Gunilla, inimiga da hiopocrisia e companheira de uma vida”), como foi na Suécia que iria concluir a sua licenciatura em Ciências Sociais e Políticas, já depois do 25 de Abril e na Universidade de Lund. As notícias da revolução apanham-no, de resto, de carro a meio caminho entre Malmöe e Lund. Nesse dia faltou às aulas e andou numa roda-viva entre as novas da rádio e da TV e telefonemas frenéticos para os socialistas portugueses dispersos pela Europa, ligando para Tito de Morais em Roma, para Ramos da Costa em Paris, para Fernando Loureiro na Bélgica. Este dir-lhe-ia que “andavam todos à procura do Mário” e o Mário, que estava pela Alemanha, lá apareceu - meteu-se num comboio via Paris, com Tito de Morais e Ramos da Costa, e no dia 28 desembarcou em Santa Apolónia, como reza a História. 

Um ano antes, e como é sabido, numa estância termal da Renânia, Bad Münstereifel, fora fundado o PS, Rui Mateus esteve lá, figurando hoje como militante-fundador do Partido Socialista, com o n.º 43. A única mulher presente, Maria Barroso, votou em representação de Salgado Zenha, personalidade que, como é sabido, viria a entrar em rota de colisão com Soares, mas a que Mateus não poupa elogios, desde logo por se ter apercebido, muito antes do secretário-geral do PS, que era impossível uma plataforma unitária com os comunistas, como a questão da unicidade sindical exemplarmente mostrara. Rui Mateus situou-se sempre, segundo o próprio, numa linha europeísta, atlantista, pró-americana, favorável à NATO e à CEE, tendo por modelo a social-democracia nórdica, onde crescera e se formara. Em 1975, foi convidado a integrar o Departamento de Relações Internacionais do PS e, em Outubro de 1976, foi eleito para a sua Comissão Nacional e para o Secretariado Nacional, assumindo o pelouro das Relações Internacionais, que manteve até Junho de 1986. De caminho, foi co-fundador das fundações José Fontana e Azedo Gneco e da Fundação para as Relações Internacionais, instrumentos essenciais de canalização de fundos e outros recursos para o Partido Socialista. Sucessivamente eleito deputado em 1979, 1980, 1983 e 1985, presidiu à comissão parlamentar de Integração Europeia e foi co-presidente da comissão Assembleia da República/Parlamento Europeu. Não tendo ascendido a MNE, como era eu intuito, foi, ainda assim, presidente do conselho directivo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, entre 1985 e 1988, e, em 1986, sucedeu a Soares na presidência da Fundação para as Relações Internacionais. No ano seguinte, foi um dos oito sócios fundadores da Emaudio - Sociedade de Empreendimentos Audiovisuais (ao lado de João Soares, Almeida Santos e Carlos Melancia, entre outros), empresa onde estoirou a bronca do “fax de Macau”, que o levaria a ser condenado a prisão. Depois, zangou-se, publicou um livro, prometeu publicar um outro, e a seguir esfumou-se.

*Prova de vida (47) faz parte de uma série de perfis

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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