Rita Ribeiro, 50 anos de carreira: “Tenho costela de saltimbanco”
Nasceu famosa. Na lisboeta Calçada da Estrela, onde vivia, a menina Rita Ribeiro era parada pelos transeuntes, curiosos de perceber se a criança se parecia mais com a mãe - a atriz Maria José, menina prodígio dos palcos desde que fora “amadrinhada” pela mítica Luíza Satanela - ou com o pai, o galã do Cinema e da rádio, Fernando Curado Ribeiro.
Tantos anos depois, Rita, prestes a completar meio século de carreira, não se lembra se estes curiosos alguma vez chegaram a alguma conclusão, mas afiança que, por isso, mas também por temperamento, a fama e a popularidade nunca foram objetivos que perseguisse: “No final da minha adolescência, na idade em que se começam a fazer opções profissionais, não pensava muito nisso porque tudo o que eu queria era ser e viver muito”, recorda-nos agora Rita Ribeiro, no momento em que se aproxima a data em que assinala 50 anos de carreira. Mas considera uma grande felicidade que esta celebração coincida com a de meio século de Democracia em Portugal.
Ao contrário do que vaticinariam a genética e a tradição familiar, a estreia, porém, não aconteceu no teatro, mas na música: “Estreei-me a cantar no Festival RTP da Canção de 1974, com os Green Windows, de José Cid e Mike Sergeant. Eu namorava com o baterista deles, o Vítor Mamede (pai da minha filha Joana), e um dia o Cid ouviu-me a cantar num ensaio deles. Gostou e convidou-me para me juntar a eles.” Assim acabou Rita, de 19 anos, no palco desse Festival, ganho por Paulo de Carvalho com E Depois do Adeus, de histórico destino, mas com os Green Windows a classificarem-se nos 2º e 3º lugares com No Dia em que o Rei fez anos e Imagens respetivamente. Mais tarde, já depois do 25 de Abril, Rita viria ainda a integrar as Cocktail, que foram, como frisa, “a primeira girlsband portuguesa. Ao contrário do que se diz, não foram as Doce.”
“Hoje tenho uma alegria imensa em ter vivido isso tudo”, confessa a atriz que não se dá ao trabalho de ocultar a efeméride e muito menos a idade, que são 68 anos vividos com a intensidade de “um furacão, hoje apaziguado”. Mas a verdade é que se passou parte da infância “fascinada” a ver os pais no palco (sobretudo do Teatro Nacional Dona Maria II), durante muito tempo não pensou em seguir-lhes o exemplo. “Comecei por tirar o curso de desenhadora litógrafa, uma profissão que já não existe, na Escola António Arroio, em Lisboa, e cheguei mesmo a trabalhar na Litografia Portugal no Bairro Alto.”
O amor às artes, ainda como um todo, nasce-lhe na infância, com os pais e com o irmão mais velho, António Semedo, também ator (filho do primeiro casamento da mãe com Artur Semedo): “Tive uma meninice muito bonita e amorosa. Mas tudo abanou aos 11 anos, quando os meus pais se separaram, e eu adoeci (hoje estou convencida que por causa do choque emocional que foi tremendo). Tive hepatite e fiquei tuberculosa. Quando, depois de muito tempo, me disseram que podia levantar-me e andar, nunca mais ninguém me agarrou.”
A esta experiência limite juntar-se-ia uma vivência africana, já que entre os 14 e os 16 anos, Rita viveu em Luanda: “Foi essencial. A minha mãe foi para lá ensaiar uma opereta e a nossa casa era frequentada por escritores, músicos, artistas e jornalistas. Repartíamos a casa com a Maria Virgínia Aguiar, que foi a primeira mulher a dedicar-se ao Jornalismo em Portugal. Tudo isso foi tão marcante que, pura e simplesmente, eu não conseguia escolher uma arte em prejuízo de outra”.
Foram tempos de descoberta. Rita estudou escultura, frequentou uma Academia de Bailado, fez teatro pela primeira vez e cantou os primeiros fados “Quando cheguei a Portugal aos 17 anos, ninguém me agarrava”, conta. “Era um furacão, uma maria rapaz. Hoje, com 68 anos, faço um exercício para me lembrar dessa essência. Acredito que é um bom exercício rodearmo-nos de fotos da nossa infância para nunca nos esquecermos de quem somos.”
Foram anos tão velozes como a sua moto Kawasaki, comprada com o ordenado que ganhava na Litografia Portugal, numa época em que as raparigas portuguesas pura e simplesmente não eram “aceleras”: “Aos 18 anos, comecei a cantar. Aos 19, estreei-me no Festival da Canção. Aos 20, fui para o teatro, já mãe da minha primeira filha Joana e já separada do Vítor”, recorda. “Foi uma vida muito intensa. Com os Green Windows andávamos sempre na estrada, coisa de que gostava e ainda gosto. As tournées dos espetáculos fazem-me muito feliz.”
Tinha a filha, Joana, dois meses quando o irmão de Rita, António Semedo (falecido em 2005 dedicou-se sobretudo à dobragem e ficou famoso ao dar a voz à figura do Toppo Giggio), a desafiou a ir às audições para uma ópera rock - Godspell - a primeira do género em Portugal. Não resistiu ao apelo: “Eu tinha visto esse espetáculo em Londres, certa vez em que os Green Windows lá tinham ido gravar, e fiquei deslumbrada. Lembro-me de ver aquilo e pensar: É isto que quero fazer.”
A peça estreou e, embora não tenha sido um êxito de bilheteira, Rita não hesita em considerá-lo “um marco na História do teatro português.” E foi também o princípio de uma carreira teatral, que se tem repartido entre revista, comédia, musical e drama.
Nos anos seguintes, Rita Ribeiro tornar-se-ia estrela incontestada de um Parque Mayer que ainda atraía multidões: “O César Oliveira, autor de dezenas e dezenas de espetáculos, foi ao Teatro Variedades, onde eu estava a fazer uma comédia, convidar-me a substituir a Delfina Cruz, que tinha adoecido, e ser a primeira figura de uma revista. Nessa época eu só tinha visto um espetáculo destes na minha vida (porque entrava a minha mãe), mas aceitei porque gosto de desafios. Entrei em Rei, Capitão, Soldado, Ladrão e fiquei por dez anos no Parque.”
Ali aprendeu muito com atores históricos do género como Eugénio Salvador ou Carlos Coelho, mas trabalhou sem cessar de formas que, diz, as pessoas nem sequer imaginam hoje: “Era muito cansativo. Uma vez contei e, num só espetáculo, eu tirava e punha meias 36 vezes. Ora, nós fazíamos três sessões por dia”.
Hoje olha para trás com evidente ternura e assumida paz: “Nunca nada me foi oferecido de bandeja por ser filha dos meus pais. Sempre gostei de desafios e sempre tive muita confiança, que é característica que herdei da minha avó materna, Marquinhas, que me marcou muito.”
Desses anos de turbilhão (“foram 22 anos em que trabalhei sem parar”) apenas guarda um arrependimento: “Gostava de ter tido muitos filhos [tem duas, com 22 anos de diferença, Joana e Maria]. E não tive vários porque não era um bom momento para o espectáculo e eu tinha de ganhar a vida.” Neste momento da conversa, Rita faz uma pausa, para acrescentar pouco depois: “Hoje em dia olho para trás e peço-lhes perdão por não os ter tido.”
Em 1989, a atriz realizou um sonho que há muito alimentava: trabalhar com o encenador Filipe La Féria. “Lembro-me de sair muitas vezes do Parque Mayer e ir à Casa da Comédia ver os finais das peças dele. Fascinavam-me completamente”. Aconteceu em What Happened to Madalena Iglésias, em que contracenava com “o meu querido António Cruz, de quem tenho muitas saudades. Foi um recomeço na minha carreira” E acrescenta: “Mas eu morri e renasci tantas vezes.”
O sucesso foi fulgurante. Dois anos depois, viria Passa por mim no Rossio, onde, entre outras figuras, Rita devolveu a vida a personalidades tão importantes do teatro português como Laura Alves, Maria Vitória ou Luíza Satanela. Mas mais marcante do que isso, contracena com o pai “depois de muitos anos de algum afastamento entre os dois.”
Outro espetáculo marcante foi Gisberta, no São Luiz, que esteve em cena durante cinco anos: “Começou com uma peça breve no Teatro Rápido e depois foi um imenso sucesso quer em Lisboa, quer em vários pontos do país”, recorda.
Rita admite que continua a gostar de tournés e do contacto com o público que está fora das grandes cidades e que vive o teatro com uma vibração especial: “Acho que tenho um bocado costela de saltimbanco”, brinca, embora admita que as dificuldades que se colocam ao teatro, e a quem o faz, são cada vez maiores: “É verdade que hoje há muitos atores com anos de televisão que, pura e simplesmente, não fazem teatro. Mas, em abono da verdade, temos de admitir que há muito menos teatros do que havia. Há muito poucos espaços, passamos a vida a bater às portas em busca de apoios, de espaços para encenar, para ensaiar. É tudo muito cansativo.”
Ainda assim, mal terminou o espetáculo Requiem para Isabel (“uma experiência maravilhosa pelo texto da Raquel Serejo Martins, pela encenação do Tiago Torres da Silva e pela contracena com a Lídia Franco), Rita está prestes a estrear, na Boutique da Cultura, em Lisboa, a peça Jackpot (de 15 de fevereiro a 3 de março): “É uma comédia leve, de que tanto precisamos nestes tempos difíceis, que depois de Lisboa percorrerá o país, como eu gosto”.
Seguir-se-à, em novembro, um monólogo, escrito pela Sandra José a partir de ideias da própria Rita, que “servirá de homenagem aos atores portugueses.” A produção será da Magia Abrangente, a produtora da própria Rita Ribeiro em parceria com a sua filha mais nova, também atriz, Maria Curado Ribeiro.
“As pessoas não imaginam o trabalho que o teatro dá”, desabafa. “Só nos veem em cima do palco mas temos de propor os espetáculos às autarquias, encontrar espaços, fazer a produção, a assessoria de imprensa, escolher cartazes.” Ainda assim, comemorar meio século de carreira é, para ela, “um momento bonito. Tive sempre trabalho e quando não tinha, inventava-o. Nunca me deixei estar em casa à espera de um telefonema. Cada vez mais estou apaixonada pela minha carreira.” Sobre o furacão que foi, Rita Ribeiro diz continuar fiel à sua essência, embora a Kawasaki tenha sido estacionada há muito. “Sou um furacão mais apaziguado.” Com a idade, diz ter aprendido a fazer pausas e a querer outras coisas para além do teatro. Todos os dias encontra um tempo para a meditação, que pode acontecer quando está a cozinhar, a passear no jardim do seu bairro ou a passar tempo com as suas cadelas, que ama sem condições. Mas também gostaria de voltar a fazer uma peregrinação a Santiago de Compostela, onde já foi, a pé, duas vezes. “Eu sou muito mais do que a marca Rita Ribeiro.”