Reininho, o rei do Doclisboa

Arranca amanhã o Doclisboa e termina a 16. Um festival mais uma vez com uma amostra vital do cinema português. Vamos viajar com Rui Reininho mas há paragens na Alvalade do casal Guerra da Mata-Rodrigues, despejos em Lisboa e a lavoura milagrosa de Raul Domingues. Entre o São Jorge, a Culturgest, o Ideal e a Cinemateca, Lisboa é a capital do cinema do real.
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São muitos os filmes portugueses no Doclisboa. Cada vez mais, a equipa deste festival internacional tem uma responsabilidade acrescida em dar visibilidade à produção documental portuguesa, sempre em crescendo. Se a quantidade não é mesmo qualidade, esta seleção pode fazer nascer e consagrar talentos, separando um pouco o trigo do joio, sobretudo quando começa a haver uma certa banalização do termo "filme documental". À partida, parece ser um ano com sangue jovem e propostas apetecíveis, mais uma vez com o risco assumido.

E é na competição nacional que se encontra um dos títulos mais esperados, Terra que Marca, de Raul Domingues, uma das boas surpresas vindas da Berlinale. Uma experiência radical de filmar a terra e o trabalho rural, sem entrevistas a velhinhas com sotaque e bigode. É a câmara ao trabalho, com os sons e os cheiros da lavoura. E é também aquilo que dali sai, entre o que o sol permite e o suor deixa. Terra que Marca tem um efeito hipnótico, apetece ficar dentro daquele ritual. Um pequeno milagre que não é espectro antropológico.

Também na competição surge A Morte de uma Cidade, de João Rosas, a sua primeira longa depois de algumas curtas que fizeram furor para uma imensa minoria. Um documentário que filma a demolição de uma antiga tipografia no centro de Lisboa para dar lugar a um complexo de apartamentos de luxo. A outra face da "nova Lisboa" pela lente de um cineasta que amava a antiga Lisboa. Provavelmente, pode dialogar com outra confissão de Lisboa, A Casa da Rosa, de Rosa Coutinho Cabral, aqui a registar o processo do seu despejo. A cineasta açoriana filma os últimos dias da sua casa onde viveu durante anos, supostamente em modo de processo de luto. Mais um filme de alguém cuja importância na ficção nacional jamais teve a atenção devida.

Welket Bungué, o ator de Crimes do Futuro, de David Cronenberg, é acima de tudo realizador e o Doclisboa não se esqueceu disso e colocou a sua curta Memória na competição. Gesto político e reflexão sobre o valor místico e poético de Amílcar Cabral. Um Doclisboa sem militância política não seria um Doclisboa.

Na secção Riscos aquele que se advinha a ser o caso do festival, Onde Fica esta Rua ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, a partir dos locais onde foi filmado Verdes Anos, de Paulo Rocha. Já aqui levámos ao céu este filme quando em agosto passou em Locarno e nunca é demais insistir: em Lisboa tem a antestreia dia 12, na Culturgest.

Fora da competição, impossível também não salivar por João Ayres, Pintor Independente, de Diogo Varela Silva, retrato de um artista ímpar. Pelas primeiras imagens, volta-se a perceber que o cineasta de Zé Pedro Rock n" Roll volta a filmar figuras das artes com requintes visuais e todos os afetos possíveis.

Para terminar o festival, discutível a escolha de convocar Objetos de Luz, objeto cinéfilo de Acácio de Almeida e Marie Carré, viagem pelas memórias do mestre Acácio de Almeida, diretor de fotografia emblema de um certo cinema português. Um filme algo didático a mais que vale sobretudo pelos "episódios" Luís Miguel Cintra e Isabel Ruth. Veio do Festival de Locarno...

Mas é na secção Heart Beat que está o bilhete nacional mais quente, A Viagem do Rei, concebido por Roger Mor e assinado por João Pedro Moreira, belíssima surpresa que imagina uma road-trip pela mente de Rui Reininho, o músico e o poeta. Neste filme-de-estrada, seguimos por alguns cantos de Portugal o homem que é neste momento o rei da pop portuguesa, embora neste retrato com a sua cumplicidade estejamos sempre mais perto do poeta.

A acompanhar a tal viagem está um quebra-cabeças com as suas memórias, do tempo de estudante de cinema aos primeiros concertos com o GNR, passando por uma infância no Porto em companhia feminina. Em fundo estão reflexões provocadoras, um Reininho cheio de boutades e chalaças geniais, algumas em jeito de confissão dura, sobretudo quando se toca na questão da tentação do álcool. A Viagem do Rei tem tudo para ser um ensaio de culto. Está feito para os fãs do homem mas é sobretudo um ato de agradecimento, algo para ficar registado. Mesmo com alguns efeitos visuais menos sóbrios, é um dos acontecimentos deste festival. O rei aceita audiências em sessões com provável lotação esgotada dia 14 na Culturgest.

ENTREVISTA

João Pedro Moreira é o homem que entrou da cabeça de Rui Reininho em A Viagem do Rei, o filme sensação deste Doclisboa. Uma estreia nas longas de um músico que tem assinado documentários de música, como Off the Beaten Track, com os Buraka Som Sistema.

Qual a expectativa de ver a sua primeira longa selecionada para o Doclisboa?
O nosso objetivo sempre foi chegar ao Doclisboa! Agora concretizámos isso e surge algum nervoso miudinho, sobretudo por ser a minha primeira longa-metragem e por ser sobre o Rui Reininho. Sempre o respeitei imenso como pensador, mais do que até como músico. E admiro também a sua maneira de estar. Mas espero que esta viagem seja bem recebida.

Desta viagem com o Rui para onde sente que a sua mente estava a ir?
Estive com ele antes em dois momentos antes e não o conhecia bem. Claro que estava dentro do seu trabalho e obra mas havia sempre a dúvida de como isto poderia acontecer atendendo à sua personalidade...E correu muito bem, o Rui esteve com o filme de corpo e alma. Deu tudo o que tinha! E tivemos muitas horas de filmagens! A viagem foi incrível e ele divertiu-se imenso.

Este é um documentário mais surreal do que real?
É assim que o vejo! O Rui é uma pessoa disruptiva, mesmo estando ligado à pop sempre corrompeu o discurso normal. Aliás, normal é uma palavra que lhe faz um bocado confusão. Lembro-me dele ficar preocupado quando ouvia dizer que depois da pandemia tudo ficaria normal, sentia um arrepio! Por isso mesmo, é alguém que viaja para muitos sítios. Há coisas que ele diz e que parecem uma barbaridade mas que depois, como um círculo, começam a fazer sentido. É essa maneira de estar e sentir que quisemos passar. Não queríamos um documentário de talking-heads com pessoas a falar sobre ele. E o mais importante é que ele gostou do filme. Queríamos que o Rui se orgulhasse de A Viagem do Rei.

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