De uma ilha de programação de qualidade no Porto para uma certeza. De 2014 até hoje, o Porto/Post/Doc mudou a cinefilia de uma cidade, mudou a maneira de se mostrar cinema numa região. Mais do que apenas um festival numa semana do ano, o rasto desta aventura cinematográfica pensada por Dário Oliveira era e é uma ponte para vários momentos ao longo do ano. Depois, o Porto mudou: ficou destino internacional e ganhou com a chegada das salas do Trindade uma nova vida. De repente, com a Casa Manoel de Oliveira e, agora, com a abertura em dezembro do Batalha Centro de Cinema, é uma outra conjetura de cinema. O Porto ficou arquipélago de uma cinefilia nova e intransigente, sendo que as ações do curso de cinema da Católica também têm agitado..E agitar é sempre preciso, sobretudo nestes dias em que as coisas estão duras para quem vende bilhetes de cinema. Após a pandemia, 2022 é um ano de reencontro com o público para muitos festivais. No caso deste festival, com o real como grande bandeira, é um reencontro que se quer também estimulante e afetivo. Olhando para a programação, há motivos para os portuenses aderirem e quem é de fora a fazer excursões, mesmo quando nesta altura do ano parece haver sobrelotação de festivais..E porque esse reencontro após a pandemia é para ser em grande, o festival volta ao Coliseu para mostrar o filme de abertura, Hallelujah: Leonardo Cohen, A Journey, a Song, documentário de Dayna Goldfine e Daniel Geller. Um filme que muitos dizem que pode chegar às nomeações da próxima temporada dos prémios. Faz sentido mais um documentário sobre o mestre trovador, sobretudo num festival que deu a Portugal em 2019 Marianne and Leonard: Words of Love, de Nick Broomfield, objeto que mostrava imagens inéditas de Cohen como amante, escritor e músico. No Porto/Post/Doc há fãs deste artista e em Portugal a memória desta lenda está bem viva..Igualmente, porque é sempre bom não se mudar em equipa vencedora, as traves mestras do festival continuam incólumes: da secção Cinema Falado à Transmission, com filmes sobre universos musicais a encher o Passos Manuel. Isso e uma competição que a direção diz ser composta de filmes "desafiadores, arriscados e prazerosos", tal como é sempre imagem de marca..Tal como os grandes festivais documentários, há sempre um ponto de vista político, sobretudo nas escolha dos focos, e, aí, os programadores do Porto/Post/Doc devem gostar da palavra revolução. Este ano a aposta é o programa Nós e a Revolução e deixa os espetadores entregues ao cinema de Márta Mészáros e Miklós Jancsó. Serão seis filmes que nos transportam para uma Hungria de outros tempos..Sierra Pettengill terá um foco em torno da maneira como constrói um olhar contemporâneo através da análise das imagens de arquivo da memória televisiva. É dela Reagan Show, documentário de culto que desmontava a política feita para televisão do mandato de Ronald Reagan. O seu novo filme, Riotsville, U.S.A., tornou-se num dos acontecimentos este ano no Festival Sundance. Trata-se de uma cineasta cuja obra pode ser um doutoramento para compreender os meandros da violência de Estado americana..Dia 19 é o dia em que o Porto/Post/Doc tem a antestreia mais esperada, Annie Ernaux: os Anos Super 8, um olhar de David Ernaux-Briot e da própria escritora, recentemente galardoada com o Nobel, sobre os seus home-movies filmados em rolos de super-8. O filme passa ao serão no Trindade e só poderá ter lotação esgotada, tal como um dos grandes momentos do DocLisboa e dos Caminhos do Cinema Português (Coimbra), Onde Fica esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, cineastas que decidiram filmar Alvalade plano a plano, como Paulo Rocha o fez no clássico Verdes Anos. O resultado é de uma beleza inquisitória, uma desmontagem daquilo que podemos esperar da nossa memória como espetadores. Esta preciosidade, que só chega para o ano às salas, tem sessão dia 23 às 22h00 no Passos Manuel..Impossível também não destacar A Viagem de Rei, de Roger Mor e João Pedro Moreira, o documentário sobre o mundo surreal de Rui Reininho. Uma trip que é mais doce do que ácida e que é prova "judicial" da genialidade do músico português. Depois da aclamação na sessão da Culturgest, no DocLisboa (uma standing ovation à Hollywood que durou minutos...), deduz-se que na cidade do "rei" a euforia possa instalar-se no Passos Manuel, dias 21 e 26. Bela surpresa, acima de tudo. Mas o caso do festival provavelmente está mesmo na competição e é uma ficção descoberta na Berlinale: A Little Love Package, de Gastón Solnicki, com a imensa Carmen Chaplin. Fala dos últimos dias de Viena a despedir-se da possibilidade de se poder fumar na via pública. Um filme de uma beleza caprichosa, feito para nos deixar valentemente de cabeça para o ar e outra prova da validade do novíssimo cinema argentino..dnot@dn.pt