Redescobrir o Repórter X numa excelente edição DVD

A Cinemateca acaba de lançar O Táxi Nº 9297, de Reinaldo Ferreira. É o novo e fascinante título de uma coleção do melhor cinema mudo português
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Ver para crer: "Este drama não é um decalque da vida real. O autor pede que acreditem na sua fantasia." A legenda que abre O Táxi Nº 9297 (1927) não podia ser mais consentânea. Esse autor, Reinaldo Ferreira (1897-1935), o célebre Repórter X, procura, com a aparente honestidade do ficcionista, esconder os prazeres obscuros do jornalista.

A história verdadeira que está na origem do filme - o caso do assassinato de uma atriz do teatro ligeiro, Maria Alves - é o ADN da realidade que proporciona à "fantasia" do autor uma singular carga negra. E sobre a tal história (que começou na sua própria reportagem, bizarra e certeira, do assunto, publicada na revista ABC), Ferreira passou um verniz de muito boa qualidade. Isto é, montou um esquema de narrativa policial com uma sofisticada linguagem de planos, que transforma o folhetim em imagens que atraem o espectador numa dança de portas, mãos e olhares: a porta de um carro, as portas dos quartos da residência onde se passa grande parte da ação, as mãos que roubam ou detêm objetos valiosos, os olhares que desconfiam uns dos outros a toda a hora.

Reencontramos agora O Táxi Nº 9297 numa notável edição em DVD com chancela da Cinemateca, que prossegue o compromisso de levar o melhor cinema mudo português diretamente às salas de estar dos espectadores (antes deste foram lançados Mulheres da Beira e Os Lobos, de Rino Lupo, e Lisboa, Crónica Anedótica, de José Leitão de Barros). Como tem sido apanágio dos lançamentos anteriores, trata-se de um trabalho exemplar, desde o restauro do filme propriamente dito aos riquíssimos extras e materiais que compõem a edição. Falamos da curta-metragem Rita ou Rito?... (1927) - uma comédia de enganos que se converte num fascinante jogo simbólico dos géneros feminino/masculino, centrado num jovem que visita a namorada vestido de mulher -; do ensaio audiovisual Os Motivos de Reinaldo (2018), de Ricardo Vieira Lisboa - uma "brincadeira", como lhe chama o próprio realizador, em torno dos temas narrativos e visuais de Reinaldo Ferreira, que se apresenta como um poema recreativo cheio de rimas -; e uma brochura de contextualização que dá a conhecer a figura do Repórter X nos seus aspetos biográficos, criativos e de personalidade polémica, com textos de Tiago Baptista, Luís de Pina e Luís Trindade.

A garantir o toque final de perfeição temos a banda sonora de Filipe Raposo, o compositor responsável pela música original dos filmes que encontramos no DVD, em plena demonstração da sua sensibilidade para revestir sonoramente as "reinaldices".

A invenção como combustível de escrita

Reinaldo Ferreira é, com efeito, a identidade que se perscruta por detrás destas invulgares criações cinematográficas, dentro do panorama português. O homem que conhecia bem o bas-fond lisboeta e que, tendo começado muito cedo no jornalismo, sentia a necessidade de injetar imaginação nos factos (tal como se injetava com morfina), foi um ficcionista compulsivo. Escrevia a um ritmo inacreditável e encontrou o elixir da sua prosa no mais condimentado estilo. Por outras palavras, inspirado como era pelos folhetins policiais e de espionagem - a sua formação fez-se essencialmente desta literatura - o Repórter X só concebia o relato de acontecimentos à luz de emoções fortes. O ingrediente do seu sucesso foi, por isso, a invenção: ao abrigo dela viajou, por exemplo, à Rússia Soviética, e de lá enviou reportagens. Presenciou também o atentado mortal de Sidónio Pais, deixando escritas as suas sobejamente conhecidas, e literariamente concebidas, palavras finais ("Morro bem, salvem a pátria!"). É como se tivesse acontecido.

Por outro lado, é verdade que o seu estilo foi muito apreciado. Escreveu para O Século, O Diário de Lisboa,A Nação, o Correio da Noite, O Primeiro de Janeiro, e a já referida revista ABC, entre outros. Trabalhou também em Paris, Bruxelas, Madrid e Barcelona, e foi nesta última que teve o primeiro contacto com uma produção de cinema, que despertou o seu desejo pela aventura, a título pessoal, da sétima arte. Realizou então O Groom do Ritz (1923), e depois, de seguida - todos de 1927, e baseados em fait-divers mediáticos - O Táxi Nº 9297, Rito ou Rita?..., Hipnotismo ao Domicílio e Vigário Foot-Ball Club.

Esperamos ver, numa produção daquela época no nosso país, uma personagem homossexual no grande ecrã, a injetar droga no braço com uma seringa? Ou pernas femininas em franca exposição? Ou um homem travestido? Tudo isto são "fantasias" do Repórter X que se testemunham nos filmes agora editados em DVD. Por entre essas fantasias revelam-se as coisas do mundo que nenhum outro realizador teve a ousadia de mostrar naquele tempo.

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