Sydney Sweeney é Reality Winner... em cada gesto.
Sydney Sweeney é Reality Winner... em cada gesto.

'Reality': ainda, e sempre, as eleições americanas 

Retrato fiel do interrogatório da jovem que libertou informação classificada sobre a interferência russa nas eleições americanas de 2016, 'Reality' - longa-metragem de estreia de Tina Satter - é uma notável peça de tensão cronometrada. A realidade de uma circunstância, palavra por palavra.  
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De todas as particularidades do filme Reality, talvez o título seja o aspeto mais imediato a esclarecer. Vejamos: se, por um lado, a palavra remete o espectador para o princípio da “realidade”, o seu duplo sentido esconde também o incrível nome da protagonista, Reality Winner (à letra, “realidade vencedora”), que em 2017 foi abordada pelo FBI, na sequência de ter vazado o relatório confidencial que dava conta da interferência russa nas eleições americanas do ano anterior. Enquanto tradutora ao serviço da Agência de Segurança Nacional (NSA), e veterana da Força Aérea dos Estados Unidos, Winner tinha diariamente acesso a este tipo de documentos, o que, de alguma maneira, endossa a tese de que a sua ação foi mais espontânea e menos premeditada do que se possa imaginar. Mas nem isso, nem os seus 25 anos de idade, impediram uma sentença de prisão de cinco anos - a maior jamais aplicada num caso deste género -, depois de um interrogatório com o seu quê de bizarro. 

3 de julho de 2017 é então a data que importa em Reality. O dia em que a protagonista, interpretada por Sydney Sweeney, chega a casa, em Augusta, Geórgia, vinda do supermercado, e se vê interpelada por dois agentes do FBI, antes mesmo de conseguir abrir a porta para meter as compras no frigorífico... Sim, pormenores como este não são de descartar, porque todos os movimentos e diálogos da circunstância que envolveu a detenção de Winner são a matéria por excelência de um filme comprometido com a filigrana da realidade tensa. 

Um argumento sem invenções

Assinado pela dramaturga Tina Satter, aqui pela primeira vez a trabalhar numa lógica cinematográfica, Reality nasce de uma peça criada pela própria em 2019, que usa a transcrição integral do interrogatório (gravado pelo FBI) como base de uma reconstituição dramática do que aconteceu naquele dia. Tanto que, por vezes, o que ouvimos da boca dos intervenientes é confrontado no ecrã com a letra da transcrição em si mesma, deixando claro o que se pretende: fazer o espectador sentir a mistura estranha de desconforto, banalidade e intimidação que caracterizou aqueles minutos da vida de Reality Winner. Entre procedimentos inerentemente agressivos e conversas sobre crossfit ou o bem-estar dos animais (um cão e um gato) da interrogada, Reality assenta no nervo de uma situação vertida palavra por palavra, em que cada hesitação ou tossidela conta para o discernimento do que significa ter forças da autoridade à porta ou dentro de casa. 

E o que “vence” neste filme é, precisamente, o minimalismo funcional com que cria suspense (às vezes a roçar a comédia negra) a partir de material não dramático, em sentido estrito. Ou seja, Satter não cedeu um milímetro à tentação de embelezar o texto, antes trabalhando com Sweeney uma matemática de gestos que procuram chegar ao osso daquele momento em todo o seu esplendor de “fatia da realidade”, refém da pobreza de diálogos que é a própria pobreza da interação humana mais crua. 

Sem forçar qualquer comentário ou mensagem sobre aquilo que retrata com a dita máxima fidelidade, Reality acaba por ser a evidência fílmica da nossa frágil condição de cidadãos, seja qual for o país em causa - embora a América, tão específica nas suas histórias de paranoia política, não se possa comparar a qualquer país. Com novas eleições a marcarem a atualidade, o caso de Reality Winner é um lembrete relevante e eficaz de como o perigo antidemocrático, denunciado ou não, continua a pontuar o tecido da realidade americana. 

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