Raul Domingues: "Filmar aquela terra é quase uma forma de terapia"

Entre o abstrato e o concreto, Terra que Marca, de Raul Domingues, é um documentário que arregaça as mangas e filma de perto o labor agrícola. Depois da Berlinale e do DocLisboa, finalmente a sua estreia nos cinemas na próxima quinta-feira. Um olhar de quem é da terra e que não vai em modas de filmar os velhinhos do campo...

Uma terra desabitada e em pousio teve em tempos marcações ancestrais. Depois, houve quem a lavrasse e o tempo passou. Chegamos mais ao menos a meio da década passada e há um jovem cineasta que acompanha a avó nesse trabalho agrícola. Raul Domingues, documentarista e cineasta que se propôs a sentir a terra, a partilhá-la. Em Terra que Marca tem um gesto de cinema quase primitivo: uma câmara a escavar e a captar sem barreiras a terra. Com todos os sons da natureza. Com todos os suores humanos.

O resultado levou este pequeno filme ao Festival de Berlim do ano passado e a vencer o prestigiado Docplay, em Espanha. Mas ao contrário do que se possa pensar, Terra que Marca não é uma lição etnográfica, mesmo quando explora os limites de uma tradição de agricultura de subsistência. É sim uma experiência completa sobre aquilo que a terra nos dá e o ciclo que de lá sai. Foi uma obra ganha na montagem, concluída no pique da pandemia e filmada sem equipa: apenas Raul no espaço rural onde cresceu, algures perto de Leiria.

"Fui captando aquilo que me interessava. Foi assim que tudo começou... coisas impulsivas de gestos, ações, movimentos das ferramentas...Tudo isto a partir das relações que tenho com a minha avó, com os vizinhos e com tudo aquilo que está no quintal de onde nasci. Na montagem construí outras procuras. Na parte da agricultura procurei, por exemplo, fazer uma espécie de catálogo da maneira de cavar mas também na forma como a terra pode lidar com processos como plantar batatas. Trata-se de um inventário de diferentes fases das diferentes culturas agrícolas. Tentei unir tudo isso. Mas muitas vezes fui à procura de certas coisas e não consegui - dessas falhas nasceram coisas que não as iria descobrir de outra maneira", conta o realizador.

A importância do som

Raul ficou cada vez mais ciente que para fazer um filme com estas respostas ao ciclo da terra e do seu trabalho, o tempo é algo que se conquista. Por isso mesmo, Terra que Marca não foi um processo rápido. O tempo do cinema é algo que precisa de um outro tempo real - o aviso fica feito a quem o queira descobrir: há que haver disponibilidade de olhar para se entrar aqui: este é um filme que dá luta. Luta e recompensa. "Filmar aquela terra é quase uma forma de terapia. Com a câmara e comigo próprio consigo chegar a certos momentos. Com a perceção que tenho do mundo consigo calar aquilo que tenho aqui dentro", palavras de um realizador que soube ter um método de liberdade e de paciência. Um realizador que percebeu também que o som daquela imersão seria uma forma de nos levar para dentro da lavoura. Sons da natureza, sons dos instrumentos agrícolas. Coisas da textura da física...

Mas Raul Domingues não está sozinho a filmar o espaço rural português. Estaremos provavelmente perante uma tendência. Tendência ou fascínio em filmar uma memória de uma agricultura de subsistência. Entre Eiras (2020), de Cláudia Ribeiro, Fojos (2020), de Anabela Moreira e João Canijo, e Rio Corgo (2015), de Sérgio Da Costa e Maya Kosa, são exemplos dessa vaga. Moda ou não, Raul admite que esse olhar do cineasta passa por um gesto de filme algo de "fora": " isso é normal; o espaço rural português parece que está a desaparecer. É como que uma necessidade de registar aquilo que desaparece. Se calhar, era bom fazer essa junção de todo esse cinema e perceber o que dali sai, mesmo tendo em conta as diferentes abordagens. Seja como for, eu não fui para a terra. Sou da terra... O meu olhar é de outra ordem. Quem só vai para o campo filmar dois, três meses...não chega! É muito superficial, é preciso ter-se uma vivência e apanhar-se a essência dos lugares". E mais abrangentemente lembra: "a terra não é só poeira, é mais do que isso. Temos de falar de um ciclo. Tudo é parte do ecossistema, do cosmos...Somos todos o mesmo e o filme tem isso: mostra a terra a falar para nós em vez de sermos nós a impormo-nos a ela. Também é por isso que escolhi este título".

A inteligência da Natureza

Cinema ecológico ou ambientalista? Será isso o fundamento de Terra que Marca? Talvez não, mas tal como o recente Alcarràs, de Clara Simón, é um objeto de cinema que nos interpela sobre o lugar do espaço rural naquilo que consumimos. Ainda assim, é o próprio realizador que torna puro esse ato de "voltar à terra": "a Natureza sabe o que fazer, a sua inteligência é muito superior à nossa. A maneira antiga de trabalhar a terra é interessante mas as novas maneiras também são válidas, mais válidas do que lavrar à maluca. Seria inteligente da nossa parte trabalhar de acordo com a Natureza, enfim, trabalhar com os ciclos da Natureza".

A ficção é uma tentação para Raul - isso sente-se aqui: queríamos saber mais coisas daquele vizinho que come uma laranja, da avó que não pára de trabalhar. Uma tentação e uma possibilidade mas o o cinema do real será de novo a próxima etapa: "faço cinema para descobrir algo e a realidade tem sempre coisas complexas que nós desconhecemos. Mas se um dia fizer ficção será sempre mais como um ponto de partida do que de chegada".

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