Ratzinger e Bergoglio dançaram tango? Verdade e ficção em 'Dois Papas'

O filme, "inspirado em acontecimentos reais", como o<em> teaser </em>da longa-metragem sublinha, foca um dos momentos mais misteriosos da história do Vaticano - a renúncia do papa Bento XVI e a ascensão do argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco.
Publicado a
Atualizado a

"Dois papas" ("The Two Popes"), assinado pelo realizador Fernando Meirelles ("Cidade de Deus"), é como espreitar pela fechadura de uma das instituições mais antigas do mundo: a Igreja Católica. "Inspirado em acontecimentos reais", como o teaser da longa-metragem sublinha, foca um dos momentos mais misteriosos da história do Vaticano - a renúncia do papa Bento XVI e a ascensão do argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco.

O filme, que estreou em novembro nos cinemas e este mês na Netflix, mostra os dois Papas em momentos que parecem inverosímeis: partilham pizza e refrigerante de laranja e até dançam tango, mas onde a ficção poderá ter ido demasiado longe terá sido nos momentos em que Joseph Ratzinger confessa ao então cardeal Bergoglio que deixou de "ouvir a voz de Deus". Esta falta de fé, a culpa - de ambos - e outros pormenores que não são assim tão inócuos, foram revistos pela BBC, que mostra aquilo que é verdade e ficção no drama que está nomeado para os Globos de Ouro (Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Ator Secundário).

A história, interpretada por Anthony Hopkins (Papa Bento XVI) e Jonathan Pryce (Papa Francisco), assenta nas diferenças - e surpreendente aproximação após conversas íntimas - entre dois Papas com visões muito diferentes do mundo.

Fernando Meirelles, o realizador, não nega a simpatia que nutre pelo Papa Francisco e já defendeu que o seu retrato de Ratzinger é até mais suave do que a realidade.

"Acho que o Papa Bento XVI é melhor no nosso filme do que na vida real, é mais carismático. Anthony Hopkins não pode evitar, é encantador. Então [o filme] foi bom para o Papa Emérito", disse ao realizador ao USA Today.

O conclave e a eleição de Bento XVI

O filme arranca com um acontecimento real: a morte, em abril de 2005, do Papa João Paulo II. Mostra o conclave, com cardeais de todo o mundo como os próprios Ratzinger e Bergoglio, que têm como missão escolher secretamente o novo Papa. O alemão Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Causa da Fé e considerado muito próximo de João Paulo II, foi visto como o sucessor natural do Papa, o que é transmitido de forma clara no filme. "Dois Papas" sugere ainda que Ratzinger ambicionava por esse poder.

Ficção. No entanto, diz a BBC,vários especialistas garantem que o alemão,um filósofo erudito, estava mais inclinado para a reforma do que para comandar a Igreja católica, que atravessava um momento difícil. Tudo o que se passou durante o conclave, as conversas que o filme mostra, serão pura ficção, uma vez que os cardeais fazem uma promessa - de que nunca irão revelar o que se discute durante a votação.

Verdade: documentos revelados pela imprensa italiana sobre o conclave de 2005 revelaram que de facto o nome do argentino esteve em segundo lugar na votação - o filme foca esse momento e cria uma tensão entre Ratzinger e Bergogglio, como na cena em que o alemão não cumprimenta com a mesma amizade o argentino, como o fez com outros cardeais presentes. Ratzinger acaba por ser eleito Papa após três "fumos" negros - só quando sai fumo branco das chaminés do Vaticano é que o mundo fica a saber que os cardeais chegaram a acordo - o fumo é proveniente da queima dos votos dos cardeais.

Ficção: Não existe nenhum facto público que indique que Bergoglio lamentou a eleição do alemão, como sugere a longa-metragem, ou que a escolha de um Papa "conservador" tenha motivado o seu pedido de renúncia do cargo de cardeal.

A renúncia de Bergoglio e o encontro em Castel Gandolfo

E eis que "Dois Papas" muda do cenário e do Vaticano passa para a Argentina de Bergoglio. O cardeal esperava - segundo a história - a resposta à carat que tinha enviado com o seu pedido de renúncia.

Ficção. De acordo com a lei canónica, assim que um bispo completa 75 anos tem obrigatoriamente de entregar o seu pedido de renúncia - Bergoglio tinha 76 anos quando foi eleito Papa. Cabe ao pontífice aceitar, ou não, o pedido. O filme sugere que a carta - e o pedido - foi uma vontade isolada do argentino e não uma regra a obedecer por todos os cardeais.

Ficção: O pedido de renúncia não é feito por carta, mas através das nunciaturas apostólicas - embaixadas do Vaticano nos diferentes países.

O filme foca a viagem de Bergoglio a Roma para se encontrar com Bento XVI - por causa da carta que tinha escrito, e sugere até que Bergoglio tinha comprado a viagem para Itália antes mesmo de ter sido convidado. "Dois Papas" explora estes "sinais" que Raztinger e Bergoglio iam recebndo e que indiciavam que o argtentino teria de ser - por vontade de Deus - o próximo Papa.

Ficção: Não houve viagem do argentino até à residência de verão de Castel Gandolfo, ondeRaztinger estaria a passar férias e nem há provas de houve reuniões ou conversas entre os dois antes de eleição de Francisco como Papa.

O "Vatileaks", a renúncia de Bento e a eleição de Bergoglio

O filme foca bastante o caos em que vivia a Igreja Católica e volta a um dos maiores escândalos dos últimos anos: o chamado "Vatileaks".

Verdade. O "Vatileaks" foi o nome dado à fuga de documentos secretos que vazaram para a imprensa em 2012 e que indicavam corrupção, chantagem e escândalos sexuais dentro da Igreja e especialmente no Banco do Vaticano. Foi o mordomo de Bento XVI, Paolo Gabriele, que entregou a maior parte dos arquivos à imprensa. "Dois Papas" é fidedigno nesta informação, como também sugere que este acontecimento pode ter pesado no pedido de renúncia do Papa Bento XVI.

Verdade. Num discurso em latim, Ratzinger anunciou a sua demissão, em fevereiro de 2013. Alegou "falta de força", devido à idade e às doenças. A longa-metragem quer dar a entender que também pesaram, na decisão, a culpa e a crise de fé do alemão, bem como a sua incapacidade para lidar com os casos de abuso sexual a menores por padres católicos. Não é claro que assim tenha acontecido - apenas a versão oficial tem sido defendida pelo Vaticano e tudo o resto classificado como "boatos".

Ficção. Também não há informações públicas que comprovem um encontro de Ratzinger com Bergoglio na Capela Sistina, ou que tenham discutido fé, humildade ou os sapatos pobres deBergoglio. Nem sequer há provas da pizza e da Fanta que comeram e beberam em conjunto. Ou o tango que o argentino quis ensinar a Ratzinger no momento da despedida, antes mesmo de ser anunciada a demissão de Bento XVI.

Verdade. O Papa Emérito - Joseph Ratzinger - gosta muito de refrigerante de laranja.

"Dois Papas" é muito mais sobre Francisco do que sobre Bento XVI e mostra a juventude do Papa Francisco. O filme sugere que o argentino esteve apaixonado e muito perto de casar.No entanto, não há provas de que um suposto noivado tivesse acontecido, nem sequer um namoro.

Bergoglio contou que quando tinha 12 anos escreveu uma carta de amor a uma mulher, Amalia Damonte, onde teria ameaçado que se ela não se casasse com ele que se tornaria padre. O filme não evoca esta história, antes coloca o papa Francisco a lembrar-se do momento em que volta atrás no edido de casamento.

A agência católica ACI Prensa já reagiu ao filme e disse que "Dois Papas" "não representa Francisco e Bento XVI".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt