“Quis tirar as mulheres de todos os tempos da sombra em que têm estado”
Leonardo Negrão / Global Imagens

“Quis tirar as mulheres de todos os tempos da sombra em que têm estado”

De D. Teresa de Leão e Castela a Maria de Lurdes Pintasilgo, a historiadora Ana Rodrigues Oliveira tece um percurso de 11 séculos no livro 'Portugal, Uma História no Feminino'. Uma proposta de síntese interpretativa da História de Portugal contada do ponto de vista feminino.
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“Mulheres de diferentes épocas, com perfis biográficos muito diversos, participaram na evolução histórica de Portugal. No caso concreto das nossas rainhas, com exceção de duas, não ocuparam o trono por direito próprio, mas, sim, como consortes ou regentes. No entanto, apesar de afastadas, por tradição, do governo do reino, a maioria destas mulheres conseguiu projetar o seu poder e a sua capacidade de influenciar os homens e mulheres que viviam em seu redor, construindo extensas redes de relacionamentos de natureza muito diversa. Não são só rainhas que o livro retrata. Dá-nos senhoras feudais, mecenas, filantropas, administradoras de latifúndios, escritoras, combatentes”. As palavras retiradas da introdução que a historiadora Ana Rodrigues Oliveira tece no seu mais recente livro, espelham intenções e amplitude da obra. A doutorada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, oferece aos escaparates nacionais um périplo de 11 séculos no livro Portugal, Uma História no Feminino (edição Casa das Letras).

A autora que tem dedicado o seu trabalho de investigação à História Medieval, não quis com este seu livro apresentar apenas uma coletânea de biografias e frisa-o a abrir a conversa: “quis, essencialmente, contar a história de Portugal numa perspetiva sequencial, cronológica e, em simultâneo, quis tirar as mulheres de todos os tempos da sombra em que têm estado. É um livro que pode ser lido biografia a biografia, embora com o objetivo principal de contar a nossa História”. Uma narrativa que abre no longínquo século XI, com Teresa de Leão e Castela [1078/91?-1130] e que percorre um contínuo temporal até ao século XXI, mais precisamente a 2004, ano da morte de Maria de Lourdes Pintasilgo, a primeira mulher portuguesa a desempenhar funções ministeriais e chefe do V Governo Constitucional (agosto de 1979 a janeiro de 1980). “Escolhi mulheres diferentes, mulheres monárquicas, mulheres republicanas, mulheres apoiantes ou opositoras do Estado Novo, e que por isso foram presas e privadas dos seus direitos; mulheres que apoiaram a Guerra Colonial, mulheres que contra ela lutaram, mulheres anarquistas, mulheres escritoras que sofreram a censura e a repressão. No fundo, procurei interligar as duas histórias, porque não quero que os leitores considerem que este livro é um manifesto feminista. E, realmente, quem ler esta obra, verá o cuidado que houve em interligar as duas histórias, a feminina e a masculina, porque é necessário estudar a mulher na sua relação com o homem e vice-versa”, fundamenta a autora, cuja tese de doutoramento se intitula A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa (2007). Uma linha de abordagem ao livro que Ana Rodrigues Oliveira deixa patente na introdução que escreve ao mesmo: “É cada vez mais importante que a sociedade tenha em conta o olhar das mulheres, porque é um olhar diferente do dos homens sobre os problemas e as possíveis soluções. E, se alguma virtude tem a História de género, a conclusão que se pode sempre retirar é que ambos tecem e compõem o tecido histórico, se complementam e explicam a realidade apreendida pelos historiadores”.

“O que temos hoje da história das mulheres?”, questiona a autora de Portugal, Uma História no Feminino, para nos deixar a resposta: “temos romances históricos, muitas vezes sem grande credibilidade histórica dada a sua natureza. Depois, temos uma coleção muito boa, com as vidas de rainhas e reis, mas que foi compilada, precisamente, por académicos, por professores universitários, e por isso peca por uma linguagem muito densa, não muito acessível ao grande público. Temos as histórias de Portugal generalistas em que, por norma, a mulher entra como moeda de troca”. A autora quis oferecer aos escaparates uma narrativa com uma linguagem que “pretendi o mais legível e clara possível”. Uma narrativa que, no dizer da docente, “nos dá a história das duas metades” e que enfatiza o papel da mulher “na evolução histórica de Portugal. Na sombra dos homens, e é isso que muitas vezes acontece, está sempre o inegável contributo feminino. Elas fizeram parte de interesses políticos, elas alteraram mentalidades, elas teceram tratados e alianças, elas tiveram e exerceram o poder muitas vezes”.

Portugal: Uma História no Feminino
Ana Rodrigues Oliveira
Casa das Letras
648 páginas

Para Ana Rodrigues Oliveira, também autora do livro Rainhas Medievais de Portugal (2010) e investigadora no âmbito da Mulher, da Criança e do Quotidiano, “a História precisa de ser reinterpretada ou, mais corretamente, atualizada. Atenção, não estou a falar de uma História romanceada. Trata-se de um processo criterioso. Inclusivamente, como professora, não posso continuar a ensinar aos meus alunos aquilo que me foi ensinado, porque a História, tal como as outras ciências, também está em constante mutação e há sempre novas descobertas, novas teses de mestrado e de doutoramento. Com as duas metades, a História ganha sentido, porque se interligam as vivências, as ações, os comportamentos, as mentalidades feminina e masculina”. Ainda sobre os manuais escolares, a investigadora frisa que estes 'falam' muito pouco das mulheres. "Durante muitos anos fui coautora de manuais escolares. Como sabe, os autores destes manuais cingem-se a um programa que se rege por normativas ministeriais. E, realmente, é uma pena que não cheguem diretivas ministeriais no sentido de se ‘falar’ mais de mulheres. Se perguntar ao grande público quais são as mulheres da nossa História que conhece, provavelmente são as tidas como más, como a D. Teresa ou a D. Leonor Teles [1350-1405], e as boazinhas, como Isabel de Aragão [Rainha Santa Isabel] ou a D. Filipa de Lencastre [1360-1415] e isso é insuficiente”.

A historiadora não esconde a sua afeição por mulheres politicamente incorretas e fundamenta-o: “a história, sobretudo a história mais antiga, a medieval, foi escrita por homens que, ao se referirem às mulheres, estavam presos à mentalidade da época e à mentalidade masculina. O que é que se procurava? Uma mulher submissa, uma mulher dócil, tudo aquilo que extrapolasse, ou seja, uma mulher que tomasse uma atitude mais assertiva, era muito mal vista. Temos os casos bem evidentes da nossa D. Teresa, a mãe do Afonso Henriques, a própria D. Carlota Joaquina [1775-1830], outra rainha também muito mal vista. No fundo, são mulheres que tinham objetivos e que, independentemente da forma como os alcançaram, lutaram por aquilo em que acreditavam”. Sobre esta perspetiva masculina da História, Ana Rodrigues Oliveira recorda-a na introdução que faz ao seu livro: “mesmo as nossas rainhas, presentes desde os primórdios de Portugal, só muito tarde mereceram atenção especial e um estudo autónomo que as diferenciasse dos maridos, os reis de Portugal”.

Nas mais de 600 páginas de Portugal, Uma História no Feminino, cabe poder, mudança de mentalidades, alteração de códigos sociais e morais e também a dimensão cultural. Sobre o Poder, diz-nos a historiadora, também autora do livro O Amor em Portugal na Idade Média (2020): “não posso esquecer a D. Teresa, ou a própria D. Leonor Teles. São mulheres que chamaram a si o poder de uma forma muito concreta. É claro que só tivemos duas rainhas por direito, Maria I e Maria II, todas as outras são rainhas consortes. Estas outras, as que foram mulheres de reis, chamaram, sem qualquer dúvida, a si o poder. E depois, é claro que há uma outra mulher que teve poder, foi D. Luísa de Gusmão [1613-1666], a mulher do nosso D. João IV, e que também vive em período muito complicado o da Restauração da Independência."

No que respeita a mulheres promotoras de uma mudança de mentalidade, Ana Rodrigues Oliveira não hesita em recordar, “sem dúvida”, Carolina Beatriz Ângelo [1878-1911], a primeira mulher cirurgiã e a primeira mulher a votar em Portugal. "Se esta mulher soubesse o que se passa no Portugal que foi dela ficaria muito triste, face à vergonhosa abstenção nas eleições. Muito ela lutou pelo direito feminino ao voto. Morreu sem o ver concretizado. Depois temos, por exemplo, uma Maria Lamas [escritora, jornalista, feminista] uma mulher que viveu entre a República e o Estado Novo”.

Mulheres que romperam códigos sociais e morais também cabem em Portugal, Uma História no Feminino. A autora destaca Maria Archer [1899-1982], uma escritora muito censurada e que acabou por morrer em circunstâncias bastante complicadas. Não que fosse uma mulher politicamente incorreta, tratava-se antes de uma questão moral e social, porque Maria Archer, nos seus livros, escrevia sobre a mulher como um todo; com desejos, com vontade, inclusivamente com desejos sexuais. É claro que o Estado Novo via estas posições como contraditória aos princípios morais das mulheres. Inclusivamente, alguns dos seus livros foram apreendidos por irem contra o código moral vigente. Portanto, é também uma mulher que rompeu barreiras. Continua a ser uma escritora muito esquecida, não obstante alguma edição mais recente”.

No que toca à projeção cultural nas suas épocas, a autora salienta “todas as mulheres que levo para o livro. Por exemplo, a nossa primeira mulher a integrar um governo, no tempo do Estado Novo, Maria Teresa Carcomo Lobo [1929-2018], muito ligada à ciência e à cultura. Inclusivamente, transponho algumas citações de Maria Teresa Lobo para o livro em que esta refere ser necessário acabar com qualquer resquício de discriminação. Diz que não se deve considerar que há uma natureza diferente na mulher, que esta pode fazer tudo aquilo para que seja preparada. Considero que isto é uma machadada muito grande em pleno Estado Novo. Esta mulher abriu caminho, há meio século, para a paridade e igualdade. Já a Cecília Supico Pinto [1921-2011], presidente do Movimento Nacional Feminino, levei-a para o livro porque queria falar da Guerra Colonial. Não podemos contar uma história de Portugal e esquecer este conflito. Era uma mulher que acreditava ‘naquilo’, e que também lutou pela continuação da guerra, que lhe fez a apologia”.

Ao livro da historiadora também não escapa uma anarquista, a Miquelina Sardinha [1902-1966], “uma mulher pouco conhecida, ligada aos movimentos do anarco-sindicalismo”.

Ana Rodrigues Oliveira dá por findo o livro com a biografia de Maria de Lourdes Pintasilgo. A historiadora olha para esta mulher nascida em 1930 para além do cargo de primeira-ministra, e enfatiza, “ao longo de toda a sua vida foi central a sua preocupação com as questões relativas às mulheres, desde a situação no mundo do trabalho, no mundo social ou como mãe”.

Sobre o elenco final do livro, as 34 mulheres que nele inclui, Ana Rodrigues Oliveira explana que “gostava de ter incluído mais biografadas. Naturalmente, há mulheres por quem nutro mais empatia. Se recuarmos aos nossos primeiros tempos, enquanto estado, e olharmos para as nossas primeiras rainhas, é claro que tivemos uma intrépida D. Teresa, mas também uma D. Dulce de Aragão [1160-1198], típica da Idade Média, portanto uma mulher passiva, para procriar e que, ao fim ao cabo, cumpriu os objetivos destinados a uma rainha medieval. Há mulheres que, ou porque ainda não se descobriu muita coisa, ou porque elas foram mesmo assim, não deixaram marca”. A historiadora reconhece que “ficaram muitas mulheres de fora” deste seu tomo. “Talvez tenhamos um futuro livro sobre ciência e as diferentes artes. Há inúmeras mulheres a tirar do anonimato”.

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