Quem tem medo de Sarah Paulson?
No seu filme anterior, Pesquisa Obsessiva (2018), centrado num pai que investiga o desaparecimento da filha, Aneesh Chaganty surpreendeu com uma proposta cinematográfica, no mínimo, original e ousada. A saber: toda a ação se passa dentro de ecrãs de computador, iPhones ou câmaras de vigilância. Um "exercício" que podia ter caído no vazio da mera curiosidade técnica, se não desencantasse doses de densidade dramática e fibra mais do que suficientes para sustentar a dinâmica do thriller. À segunda longa-metragem, Corre!, o realizador americano mostra uma certa coerência autoral, mantendo uma linha de produção de baixo orçamento e o foco nos segredos que podem existir entre pais e filhos - neste caso, entre mãe e filha -, mas a pulsação do mistério já não funciona da mesma maneira. Enfim, nem tudo se perdeu.
Sarah Paulson está aqui para nos lembrar que tem um mestrado em papéis de mulheres com um brilho de insanidade (ainda recentemente, na série Ratched, um spin-off de Voando Sobre um Ninho de Cucos, deu nova vida à sádica enfermeira do filme de Milos Forman). Ela é Diane, uma mãe solteira que no prólogo do filme encontramos ainda no hospital, diante da incubadora com o seu bebé prematuro. O ecrã fica a negro, e nele apresenta-se uma lista de doenças, desde a asma aos diabetes, que o espectador identificará na filha, Chloe, 17 anos decorridos. A particularidade desta jovem, com que o título Corre! estabelece um jogo de expectativa, é que está presa a uma cadeira de rodas, embora a sua inteligência e desenvoltura quotidiana revelem uma autonomia adquirida por alguém que deseja ir mais longe: passa os dias à espera de uma carta de admissão na faculdade.
Chaganty semeia demasiado cedo os sinais estranhos da vivência doméstica/familiar. Chloe não tem amigos nem telemóvel, o uso da internet depende da supervisão da mãe, e, como se não bastasse, a casa situa-se numa zona isolada. Eis os ingredientes que lançam o alerta para o que se vai passar entre esta filha que desconfia da ausência de correio em seu nome - para além de começar a questionar a medicação que a mãe lhe dá - e essa mulher protetora com traços obscuros.
A transparência da fórmula de Chaganty, algo entre Misery (1990) e What Ever Happened to Baby Jane? (1962), não ajuda a que Run se torne epidérmico, como era suposto, à medida da acumulação das suas pequenas grandes descobertas. Estas têm sabor a rotina de thriller. E o filme também não entusiasma ao nível emocional, já que as personagens parecem respeitar um design específico para a circunstância narrativa, quase sem sugestão de passado. Mas uma coisa é certa: à parte o sempre apreciável charme sombrio de Paulson, a revelação de Corre! é Kiera Allen, a debutante que interpreta Chloe, sendo ela própria paraplégica. O que esta miúda consegue fazer com a premissa "fugir da minha mãe desequilibrada" é do domínio do heróico. Um verdadeiro achado que acrescenta realismo físico e palpável às situações, por mais exageradas que elas sejam no papel. Talvez Corre! sirva apenas para isto: ser uma montra para as habilidades de acting da jovem Kiera Allen.
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