Quando é a máquina que valida o ser humano
Juan Villoro não quis escrever um livro apocalíptico, mas quem lê Não sou um robô não pode deixar de questionar o estado da civilização atual face ao crescente domínio da tecnologia digital em grande parte da vida do ser humano. A investigação está dividida em duas grandes partes: O Desaparecimento da Realidade e Formas de Ler, de forma a dar corpo à tese que Villoro defende; de ainda ser possível combater com o livro a imposição digital que se sobrepõe a toda a vida anterior das sociedades humanas.
Entre as várias alterações em curso estão a perda de memória e a diminuição da inteligência. Juan Villoro nem necessita de ir buscar exemplos além dos triviais: “Cada vez se utiliza menos a capacidade do cérebro: já não se fazem contas mentalmente, já não se consultam enciclopédias, já não se usam mapas, ou seja, cada vez se ativa menos o cérebro. Enquanto utilizamos menos a nossa inteligência, o que se passa com a Inteligência Artificial é exatamente o contrário, está sempre em evolução.” O mesmo se passa com o algoritmo, pois também permanece em constante aperfeiçoamento: “Ainda falta muita iniciativa ao algoritmo e é incapaz de se assemelhar ao processo humano. O que busca por enquanto é à semelhança do que as pessoas fazem por não conseguir inventar, mas com o tempo essa situação vai sendo corrigida. Estamos perante o perigo de o algoritmo passar do pré-estabelecido ao que lhe poderá ser possível, como as duas dimensões que o ser humano domina: o que existe e o que pode existir. Esta diferença define-nos como espécie por agora, enquanto o algoritmo não vai mais longe.”
Dada a realidade atual, Villoro não tem dúvida sobre os perigos da Inteligência Artificial, daí que considere que “chegou o momento em que temos de estar conscientes dos riscos que significa a presença da Inteligência Artificial e sobretudo do modo como o digital cada vez mais domina o ser humano”. Faz o seguinte alerta: “Estamos perante uma tecnologia que deveria ser uma ferramenta útil e em vez disso está a converter-se numa situação que nos torna reféns e mais dependentes. Nesse sentido, o meu livro tem um tom de alerta mas também de resistência através da cultura, daí que intercepte o tema da tecnologia com o da leitura.”
O título do livro é uma certificação da grande questão perante a qual a humanidade se encontra, como diz o autor: “Quando usamos agora a Internet, estamos face a um paradoxo inesperado: quem me vai qualificar como humano é um robô. Pertencemos à primeira geração da espécie humana que tem de se declarar humana mas não o faz a um ser da mesma espécie, antes a uma máquina.” Apesar de não ter dúvidas sobre a existência de muitas vantagens, não duvida que somos “vítimas da atual sociedade digital”. E essa situação poderá ser confirmada dentro de uns milhares de anos quando os arqueólogos do futuro quiserem conhecer o tempo em que vivemos: “Espero que o nosso mundo digital lhes seja incompreensível e, principalmente, que não tenham como Champollion uma Pedra de Roseta que lhe permitiu decifrar os hieróglifos egípcios; se os do futuro entenderem o que se escrevia nas redes, vão achar que tínhamos uma sociedade de cretinos e de imbecis porque a maioria do que se publica na internet é vergonhoso. Desejo que encontrem antes os nossos livros, porque dão uma opinião minoritária mas mais profunda do que é o ser humano.”
Juan Villoro está consciente de que a humanidade não irá abandonar a tecnologia de que dispõe: “Tão cedo não porque está refém dela, o que se poderá conseguir é estabelecer uma relação mais regulada. No entanto, sabe-se que uma das maiores dificuldades para o ser humano é ser moderado e que quando se tem contacto com uma coisa que se aprecia muito, corre-se o perigo de se tornar viciado. Pode-se ser viciado em tabaco, vinho, sexo e também em internet. Será preciso instituir uma pedagogia de moderação na utilização da tecnologia, aliás, hoje não nos damos conta de que não estamos a satisfazer as nossas vontades e sim dependentes dos algoritmos e a funcionar em função de interesses de outros.” Entre esses outros, há um trio de protagonistas que se destacam, diz: “Zuckerberg, Elon Musk e Jeff Bezos não querem que a humanidade se liberte deste vício, por isso eu digo que «o problema não é o robô, mas o amo», este é que precisa de ser controlado. Quem os controla? Ninguém. Seria necessário criar níveis de organização social para o fazer. Apesar da dificuldade em contrariar esta realidade, há situações que me dão esperança, como a greve dos guionistas em Hollywood, que vincou o seu ponto de vista.”
Entre os vários livros que já publicou, Juan Villoro tem um que é inesperado: Deus é redondo. Trata do poder do futebol e de como este desporto pode ser um instrumento de civilização. Explica o objetivo de o ter escrito: “O futebol é um espelho da nossa realidade enquanto seres humanos complexos e neste desporto encontram-se situações de toda a espécie: solidariedade humana, possibilidade de um país pobre triunfar sobre um poderoso, mas também os piores defeitos humanos: a comercialização do atleta, a xenofobia, o racismo, o nacionalismo... É um desporto profundamente humano, mesmo que se tenha tentado robotizar-se com o VAR, que pretendia evitar o erro do árbitro. Pode ser um bom paralelo para o meu livro Não sou um robô, pois o futebol fracassa ao tentar tornar-se mais científico e tecnológico, porque quem opera o VAR é um ser humano que continua a cometer erros.”
NÃO SOU UM ROBÔ
Juan Villoro
Zigurate
279 páginas
Outras novidades literárias
DIÁLOGO BIOGRÁFICO
O entrevistador José Jorge Letria tem edificado nos últimos anos uma coleção de depoimentos com protagonistas da cultura portuguesa de grande importância, a que chama o fio da memória, e desta vez a conversa foi com Gonçalo M. Tavares, em que o escritor refaz o seu percurso, o porquê de não ter tido urgência em publicar, o de quando o fez ter lançado vários livros quase em simultâneo, as várias coleções em que encaixa os seus registos, as traduções pelo mundo fora, a relação com outros escritores… ou seja, uma muita boa dose de informação sobre o autor, exposta sem hesitações.
GONÇALO M. TAVARES
José Jorge Letria
Guerra & Paz
135 páginas
QUARTETO FUNDAMENTAL
Bastava apenas a introdução deste As Cartas do Boom para ser impossível resistir à leitura da troca de correspondência entre quatro grandes figuras da literatura latino-americana: Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Reunindo um total de 207 cartas, a partir do ano de 1955, torna-se num documento fundamental para se perceber o fenómeno literário que este quarteto gerou e a que o planeta literário nunca mais deixou de dar importância, e que observado a esta distância se transforma numa arca prodigiosa.
AS CARTAS DO BOOM
Cortázar, Fuentes, Márquez e Llosa
D.Quixote
558 páginas