“Quando tinha 15 anos, passei a rejeitar fortemente o catolicismo. Fiquei surpreendida quando ele ressurgiu na minha escrita”
PAULO SPRANGER/Global Imagens

“Quando tinha 15 anos, passei a rejeitar fortemente o catolicismo. Fiquei surpreendida quando ele ressurgiu na minha escrita”

Em Lisboa para o Meet the Author da FLAD, Tess Gunty falou ao DN do seu primeiro livro 'O Contrário de Nada' ('The Rabbit Hutch', no original). Uma conversa com a autora americana em que se falou de religião, do seu Indiana natal, de Biden e Trump e de coelhos, muitos coelhos.
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O Contrário de Nada (Alfaguara) é o seu primeiro romance. Disse em entrevistas anteriores que estava a viver em Brooklyn, acabada de chegar do Midwest, a que pertence o seu Indiana natal, quando as personagens começaram a ir ter consigo. Foi assim que começou?
Eu escrevo ficção desde pequena. Mesmo antes de saber escrever, fazia umas ilustrações e contava a história ao meu pai que a escrevia. No entanto, nunca pensei em escrever algo passado numa cidade como a minha, porque nunca tinha lido nada passado numa cidade como a minha. Se acharmos que as narrativas que se passam à nossa volta e dentro de nós não são importantes, ficamos desinvestidos de vontade política e criativa. Então, quando finalmente deixei a minha terra natal aos 22 anos, percebi que quase toda a minha escrita era atraída de volta para o Midwest. E pensei: algo está a acontecer, tenho de compreender esta atração magnética. Então decidi enfrentá-la e criei Vacca Vale, uma versão fictícia de muitas destas cidades, que sofreram destinos semelhantes. Quando eu tinha 10 anos andava num colégio católico e tínhamos uma professora de religião que tinha uma interpretação muito literal dos ensinamentos católicos. Um dia ela introduziu-nos na ideia de Purgatório. Nunca tínhamos ouvido falar em tal. Conhecíamos o Céu, o Inferno. Mas ela descreveu o Purgatório como um terceiro local, de saudade eterna e sede insaciável. E explicou que se esperava ali eternamente. Na minha cabeça comecei logo a imaginá-lo como uma sala de espera sem janelas onde esperávamos sem saber se o nosso nome alguma vez seria chamado. Onde não estava mais ninguém, nem havia nada para ler. A professora fazia parecer que era muito fácil ir parar ali. Portanto, fez-nos decorar uma oração que ela garantia que libertava mil almas do Purgatório de cada vez que a disséssemos. Calculava no quadro quantas almas é que libertávamos cada dia e no fim do ano anunciou o grande total de almas que ela e as suas turmas tinham libertado. Isto para dizer que havia na forma como ela descrevia o Purgatório algo muito familiar para mim. E percebi: mas não vivemos já todos no Purgatório? Portanto, quando me sentei para escrever este romance, queria evocar essa sensação do Purgatório e criar uma espécie de oração secular que ajudasse a libertar todas as pessoas desse lugar.

Colocar o Midwest e a sua cintura de ferro (a Rust Belt) no centro da sua escrita foi uma forma de fazer com que as pessoas entendam melhor a região dos EUA onde a Tess nasceu e cresceu?
Sim, quando estou a escrever estou antes de mais a tentar perceber melhor as coisas eu própria. É verdade que o Midwest tem milhões de habitantes mas está sub-representado no imaginário coletivo americano e ainda mais no imaginário internacional da América. Então tentei prestar atenção ao que estava à minha frente, uma visão improvável de transcendência, e tentar ver se conseguia conjurar isso, mesmo num cenário tão mundano. 

Eu sei que a aborrece que as pessoas descrevam o Midwest como um sítio de “homens brancos zangados que votam em Trump”. É uma simplificação injusta?
Sim. E essa atitude vem sobretudo dos políticos americanos. É uma região do país cujo perfil é muitas vezes traçado pelos políticos para calibrar as suas campanhas. Mas na verdade, o Indiana, o meu estado, é mais diverso do que a média dos EUA. Em parte isso deve-se a, depois da abolição da escravatura, muitas pessoas terem vindo para o Midwest porque se ganhava talvez três vezes mais dinheiro a trabalhar numa fábrica do que numa fazenda no Sul. Encontramos ali tantas ideologias diferentes, e diferentes desejos e anseios. Eu quis prestar tributo à complexidade e vastidão deste local.

Como descreveria o Indiana politicamente? 
É complicado. Tecnicamente o Indiana é um swing state, ou seja pode pender tanto para os democratas como para os republicanos. Quando eu tinha 15 anos e estava a começar a despertar a minha consciência política, o Indiana votou Obama. Então fiquei com essa visão esperançosa. Mas desde então tornou-se cada vez mais conservador e radical. A minha cidade, por exemplo, ainda está muito dividida politicamente.

South Bend, certo? 
South Bend. A cidade tem muita gente de fora que trabalha na universidade. E essas pessoas tendem a ser mais progressistas. As pessoas que vivem lá há gerações tendem a ser mais conservadoras. Portanto a cidade posiciona-se entre estes dois polos. O Indiana, como contém estes dois extremos, politicamente funcionou sempre como um pêndulo. Por exemplo, durante a Guerra Civil americana o Indiana era um estado do Norte, pertencia à União, tecnicamente. Mas a cultura no Indiana era muito diversa: na parte norte, de onde eu sou, junto ao Michigan, era mais próxima dos sentimentos nortistas, enquanto na zona sul, mais perto do Kentucky, era mais sulista. E talvez como reação contra a Guerra Civil, o Indiana teve algumas das leis mais racistas da América no seguimento da emancipação dos escravos. Foi o epicentro do ressurgimento do Ku Klux Klan nos anos 1920. Nessa altura um em cada três homens brancos nascidos no Indiana pertenceram ao KKK. Até havia um KKK para as crianças. Dominava completamente o estado. Mas ao mesmo tempo havia muitas pessoas a trabalhar a favor dos direitos cívicos. E ainda é o caso hoje. Os dois extremos existem e coexistem. Admiro muitos as pessoas que trabalham a favor de políticas progressivas em sítios como o Indiana - seja o aborto, a proteção ambiental, na luta contra a supremacia branca, porque são estas pessoas que têm de travar a luta. No entanto conheço muita gente que sempre viveu em cidades progressistas e que despreza estas regiões da América.

Nasceu e viveu a infância em South Bend, viveu na Califórnia e acaba de se mudar para Nova Iorque. Tendo contactado com um ambiente mais conservador e com dois ambientes muito liberais, como vê as presidenciais de novembro nos EUA? As divisões são tão extremas como as vemos do exterior?
Acho que estamos condenados. Acho que Donald Trump vai vencer. O que eu vejo neste momento é que a América não é uma verdadeira democracia, por causa do Colégio Eleitoral e do Supremo Tribunal. Ao longo dos anos, os republicanos dominaram o sistema de forma a manipulá-lo a seu favor. Na minha vida, só por uma vez um presidente republicano venceu o voto popular, mas têm ocupado a Casa Branca alternadamente com os democratas. Portanto, acredito que este ressurgimento de políticas intolerantes, como o recuo no aborto, a atitude em relação à imigração, aos transsexuais, aos negros, o pânico moral no Sul com a proibição de livros, etc, acho que é uma minoria. Não é insignificante, mas é uma minoria. No que se refere ao aborto, tenho a certeza que a maioria dos americanos não apoia a decisão do Supremo. Este tribunal foi sempre muito mais conservador do que o povo americano. Se tivéssemos uma verdadeira democracia, um voto contaria como um voto, mas não é isso que acontece. E não estou a dizer que não há muita gente que genuinamente apoia Trump. Há. Mas não é a maioria. E essa é a única coisa a que me posso agarrar agora que me dá esperança. Não que eu acredite que o sistema político vai ser reformado tão cedo, mas quando penso que estas ideias não são as da maioria, sinto que posso continuar a viver na América. 

Apesar de a América ser um país muito diverso, mesmo o seu Indiana, como dizia há pouco, temos dois homens brancos e velhos na corrida à Casa Branca…
Não sei como chegámos até aqui. O Partido Democrata tem feito um péssimo trabalho para se reorganizar. Mas também tem a ver com as próprias falhas do sistema democrático. Se sabe que no seu estado o seu voto não conta, porque estaria motivado para votar? As pessoas não estão envolvidas. O Partido Democrata tenta sempre jogar pelo seguro e isso não entusiasma as pessoas. Outro fator que contribui para isso são as redes sociais, os algoritmos que potenciam os conteúdos incendiários de certas plataformas. O mesmo nos media, também. 

PAULO SPRANGER/Global Imagens

Voltando ao seu livro. Falou já da sua infância e do catolicismo que a marcou. Foi importante colocar parte disso no seu livro? Por exemplo, vemos o misticismo de uma personagem como Blandine…
Na verdade fiquei surpreendida por aparecer no livro. Talvez por ter crescido muito, muito católica. A minha mãe esteve num convento quando estava na casa dos 20, mas foi expulsa porque nunca chegava a horas e falava demasiado alto. O meu pai chegou a pensar seriamente ser padre. Os meus pais são ambos democratas, o que não era raro mas hoje é cada vez mais. A minha mãe tem origem irlandesa, o meu pai tem origem alemã, ambos colarinhos azuis democratas e católicos, uma espécie de sindicalistas católicos. E o catolicismo da minha mãe é muito guiado pelo sobrenatural, sinais, milagres, visões. A minha mãe tem 11 irmãos e ela e as irmãs tiveram experiências… e essas experiências sempre foram interpretadas através de uma lente espiritual. Eu cresci com isso e foi como se isto criasse um portal para outro mundo, como se fosse possível entrar noutro reino. Eu sentia-me sobretudo atraída pelas histórias das místicas, por haver tão poucas mulheres na tradição católica com este tipo de arbítrio sobre as suas vidas. Era como se os homens à volta delas as temessem. Eram uma espécie de bruxas e isso atraía-me muito. Mas à medida que crescia, comecei a ganhar consciência dos problemas da Igreja Católica, o sexismo embutido no modelo e os abusos sexuais. Portanto, quando tinha 15 anos, passei a rejeitar fortemente o catolicismo. Estava desejosa de me afastar o mais rapidamente possível. Portanto fiquei surpreendida quando o catolicismo ressurgiu na minha escrita. E não o fez sob a forma de amargura ou ressentimento ou toxicidade. Acho que tal só foi possível porque eu ancorei isso numa personagem, Blandine, que não era religiosa, que não cresceu com isso, mas era plausível que tivesse encontrado essas histórias ou esse tipo de estrutura. Quis prestar homenagem ao reino da espiritualidade, que me encantava quando era criança. Às mulheres eram tantas vezes negado o acesso à educação ou a qualquer tipo de controlo sobre as suas vidas que os conventos se tornaram refúgios para elas ao longo dos tempos. Eram lugares de grande produção intelectual. E Hildegard von Bingen, que tanto cativa Blandine, era um grande exemplo disso. Ela era uma potência intelectual - além dos seus escritos místicos, era uma polímata.

O seu livro inclui comentários, desenhos. Incorporar estas formas diferentes de comunicação era importante para passar a mensagem que queria aos leitores?
Foi fundamental. A experiência deste romance consistiu fundamentalmente em tentar escolher locais improváveis de transcendência e ver o que poderia gerar dentro deles. E para mim as caixas de comentários são uma espécie de guilty pleasure. Nunca leria comentários sobre o meu trabalho, mas gosto de ler comentários sobre coisas que são inócuas para mim, como tutoriais de YouTube sobre como montar uma mesa ou culinária. São locais de humor e de crueldade. Mas o que é mais interessante para mim é que ali se revela o subconsciente coletivo. Como é que as pessoas escolhem comunicar quando não têm obrigação de se identificar? É como se fosse um confessionário. No livro, a secção de comentários foi a solução para um problema porque eu queria mostrar o trabalho da personagem Joan [que rastreia os comentários online em obituários]. Tal como os desenhos também foram uma solução para um problema. Havia uma cena que eu estava a tentar descrever e que era caótica. Sempre que a tentava pôr em palavras eram exageradas, melodramáticas, confusas, desordenadas. Mas continuava a vê-la como uma tira de banda desenhada. Eu sabia que tinha um personagem que era ilustrador. Então falei ao meu irmão nesta ideia logo quando comecei a escrever. Ele é um artista maravilhoso e concordou em fazer os desenhos. Mas só os fez uns cinco anos depois, quando o livro foi editado. Fizemos muitas maquetes. E ele levou as coisas para outro nível - eu tinha pensado fazer uma interpretação literal da cena e ele sugeriu fazer uma interpretação figurativa, o que foi muito mais interessante. No fundo eu quis usar o que havia na vidas das minhas personagens e construir algo a partir daí. 

Não posso deixar de falar sobre os coelhos. Há muitos coelhos no livro. Porquê?
A certa altura alguém contou e há mais de 80 menções a coelhos. O edifício onde se passa chama-se  Lapinière. Era um termo francês antiquado que um doador quis usar para parecer chique. Eu via os coelhos em todo o lado. E sentia-me atraída para eles por causa do Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas. Pensava neles como portais para outro mundo. Mas também gostava de os coelhos evocarem associações conflituantes. Na imaginação americana, situam-se entre a inocência e a corrupção. Há o Donnie Darko e a Playboy e o Coelho da Páscoa. São animais de estimação, mas também podem ser comidos. E depois vi o documentário Roger & Me, de Michael Moore, sobre a sua terra natal, Flint, no Michigan, que é muito semelhante à minha mas que ainda sofreu mais por não ter lá outra indústria capaz de absorver o choque económico quando a indústria automóvel fechou. A certa altura Moore vê um cartaz à beira da estrada que diz “coelhos, animais de estimação ou carne”. Aproxima-se e encontra uma mulher que cria coelhos para ganhar a vida depois de perder o emprego. Uns, vende como animais de estimação, outros para carne. E então ela diz uma coisa que se tornou na epígrafe do livro que é que quando chegam a certa idade os machos que estão enjaulados juntos têm de ser mortos, senão começam a atacar-se uns aos outros. Pareceu-me a parábola perfeita para a violência horizontal. Acho que me deparei pela primeira vez com o termo “violência horizontal” no trabalho de Frantz Fanon, um teórico anti-colonial francês. Ele usou-o para descrever a raiva que grupos oprimidos dirigem contra o colonizador. Mas esta não atinge o colonizador porque ele está barricado na sua fortaleza de poder e proteção. Então a raiva tem de ir para algum lado. Quando pensei na violência e negligência que testemunhei no meu bairro, fosse um tiroteio, vícios, pais a serem detidos e os filhos a ficarem entregues a si próprios, os níveis de violência são astronomicamente mais altos na minha terra do que em média no Indiana. E os níveis no Indiana são astronomicamente maiores do que a média na América. Portanto, a violência horizontal e os coelhos enjaulados pareceram-me um resumo eficaz e evocativo desse tipo de violência.

O CONTRÁRIO DE NADA
Tess Gunty
Alfaguara
424 páginas

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