O carisma de Napoleão é um dos ângulos fortes na nova biografia de Andrew Roberts sobre o imperador.
O carisma de Napoleão é um dos ângulos fortes na nova biografia de Andrew Roberts sobre o imperador.DR

Quando o povo português unido derrotou Napoleão

Andrew Roberts biografou o imperador e está a escrever sobre as Invasões Francesas. O desaire militar na Rússia tem uma nova interpretação.
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A tradução da biografia Napoleão - O Grande recentemente publicada em Portugal acrescenta novidades às muitas já escritas sobre o militar e imperador francês (1769-1821). O historiador Andrew Roberts teve o benefício de poder consultar a edição de 33 mil cartas escritas por Napoleão e expõe várias teorias que alteram o perfil de uma das figuras francesas que mais destruíram os alicerces da sociedade do seu tempo, designadamente sobre o pior dia da vida do militar, aquele em que abandonou Moscovo derrotado e tomou um caminho de retirada que o amaldiçoou para sempre.

São inúmeras as biografias sobre Napoleão e livros com o seu nome no título. Roberts calcula que a sua soma seja igual à dos dias que passaram desde a sua morte, ou seja, dezenas de milhares de volumes sobre ele. No entanto, defende que a sua biografia tem a vantagem de ser escrita após a consulta e exame dessa correspondência que esclarece vários ângulos do protagonista: “Encontrei muitos documentos a que os anteriores biógrafos não tiveram acesso”.

Antes de se entrar na biografia pergunta-se ao autor o que pensa de uma outra visão histórica sobre o protagonista do seu livro, a do filme de Ridley Scott, que tanta polémica provocou. Para Roberts só pode existir uma opinião: “É um filme horrível, como um péssimo livro de História. Aliás, qualquer livro tão mal feito teria sido proibido por conter tantos erros absurdos. Tudo se resume à resposta que o realizador deu às críticas: "Que se lixem os historiadores. O que sabem eles se não estavam lá!”

Questiona-se o que poderá trazer de novo mais um livro sobre Napoleão, uma figura que teve direito à primeira biografia quando tinha 30 anos. A resposta é de que cada geração de leitores quer uma nova visão de Napoleão: “Foi o que aconteceu após a II Guerra Mundial, quando muitos historiadores criaram a ideia de que Napoleão era uma figura proto-Hitler e assim foi olhado nos anos que se seguiram ao fim do conflito. Depois, reconheceram que nada tinham a ver um com o outro, ou seja, a cada década que passa surge uma nova grande biografia de Napoleão porque há necessidade de um novo olhar.” 

As milhares de cartas que estão na base de Napoleão – O Grande proporcionaram dados importantes. Segundo o historiador, “só o facto de ter escrito tantas cartas por dia, uma média de quatro, é uma demonstração de como conseguia compartimentar o seu pensamento e concentrar-se em diferentes aspetos. Escrevia-as até pouco antes e durante as batalhas, o que demonstra a sua capacidade para se focar em vários assuntos ao mesmo tempo. Se a correspondência revela muito do seu pensamento, são também um bom exemplo sobre a capacidade de reter detalhes sobre as personalidades para quem estava a escrever”.   

O momento mais perigoso que Napoleão viveu enquanto líder militar foi o da invasão da Rússia. Numa altura em que decorre uma guerra em plena Europa é impossível não querer ouvir a sua opinião sobre o desastre russo de Napoleão e o conflito na Ucrânia. Roberts elabora: “A invasão napoleónica da Rússia foi um erro, pois tentou criar um conflito que não tinha razão de ser e o mesmo se passou com a invasão da Ucrânia por Putin. No entanto, é difícil encontrar situações em comum porque um invadiu a Rússia e o outro é o invasor da Ucrânia.”

Andrew Roberts tem uma nova interpretação sobre a derrota de Napoleão na Rússia. Explica a sua tese: “A data chave dessa derrota foi o dia 25 de outubro de 1812, quando Napoleão decidiu ir por uma nova rota em vez da primeira escolhida para deixar Moscovo uma semana antes. Essa decisão que não fazia sentido foi uma das mais desastrosas da História, mas creio que houve razões específicas para o fazer. Contudo, se tivesse decidido ir para sul, teria evitado que o exército russo o perseguisse e regressaria sem ser aniquilado da forma que foi.”

Se o historiador considera Napoleão um líder astuto e um génio militar, o que explica ter sido no final confinado na ilha de Santa Helena e despojado da sua liberdade. Mais uma vez regressa à data fatídica: “As decisões erradas daquele dia 25 de outubro, as derrotas posteriores na Alemanha, mesmo que tenha vencido cinco batalhas em sete dias, não foram suficientes para evitar a sua abdicação e o exílio em Santa Helena.”

As derrotas de Napoleão levam ao assunto da Invasões Francesas, onde também foi derrotado. Andrew Roberts tem um grande interesse nesse período das campanhas napoleónicas em Portugal e revela que será o tema do seu próximo livro, Napoleão e os seus Marechais: “Estou neste momento a ler as memórias dos generais que comandaram as invasões francesas a Portugal e já visitei vários lugares no país onde se deram os confrontos com as tropas francesas. O que quero é entender os argumentos de Massena e de Junot sobre as batalhas em Torres Vedras, Coimbra e outros locais onde foram derrotados. O que se passou foi que Napoleão nunca foi capaz de ser bem sucedido em Portugal, para sua grande fúria e ressentimento. A resistência portuguesa foi muito grande e de uma enorme bravura, sendo a primeira vez em que países e povos europeus venceram Napoleão, com estratégias de grande sacrifício, mostrando ao resto do continente europeu que um povo unido poderia derrotar Napoleão. Muito antes de Espanha ou da Rússia, ou de qualquer outro país, foram os portugueses que o venceram devido à sua atitude.”

Terão as lições de liderança militar e política de Napoleão ainda valor na atualidade é uma pergunta a que o historiador responde de imediato: “Sim, bastante valor, porque até ter tomado as decisões erradas na Rússia tivera muitas campanhas vitoriosas. A sua liderança era baseada numa enorme concentração num objetivo e, em simultâneo, numa enorme energia para se ocupar do que era necessário. Nas estratégias para vencer as batalhas, na análise da topografia local para encontrar vantagens nos confrontos, decidir se atacava pelo flanco direito ou esquerdo em função do terreno e do tempo. Era capaz de obter essas vitórias devido a uma grande capacidade tática e também pelo seu carisma pessoal. Tudo isso se unia, sempre no tempo certo, para formar uma liderança cujo exemplo ainda é relevante hoje.” Ao rebater-se com a sorte que estava sempre presente, Andrew Roberts concorda: “Napoleão teve sempre uma grande sorte ao longo da sua carreira. Poderia ter perdido muitas das batalhas mas isso não aconteceu devido à boa escolha que fazia, por exemplo, dos seus marechais, que também tinham de ter sorte. Também reconhecia quando a sorte acabava e mudava de direção de forma a evitar desastres. Pode dizer-se que era a personificação da sorte no ser humano.”  

Para escrever a biografia, o historiador fez um reconhecimento da maioria dos locais onde Napoleão fez História. Foi a Santa Helena porque “nos cinco anos que passou lá tentou escrever um livro que explicasse as suas ações e assim deixar a sua voz para as gerações futuras”. Recorda que é “um lugar com um clima muito desagradável, que Napoleão estava com um cancro”, e essa visita à ilha do exílio lhe deu uma noção da influência que o local poderá ter sido sobre o militar “quando estava a tentar reabilitar a sua figura”. Um livro que, refere, “foi muito bem sucedido e tornou-se um dos maiores sucessos de vendas do seu tempo”. Acrescenta: “Napoleão tinha uma forte noção da posteridade, da sua missão e da imagem que queria deixar.”

Andrew Roberts também percorreu a quase totalidade dos sessenta locais onde decorreram as batalhas de Napoleão. Explica o porquê: “Ir aos campos de batalha é fundamental para dar credibilidade ao leitor sobre o que se está a escrever. Aí, pode-se compreender também como a topografia do terreno é muito importante para o comando do conflito. Por exemplo, as batalhas como Salamanca e Austerlitz dependiam em muito da posição em que os generais acompanhavam os desenvolvimentos no terreno.”

Além destas visitas, o historiador também visitou vários arquivos: “Existe uma enorme documentação que exige deslocações a arquivos militares e diplomáticos, arquivos franceses e internacionais. Além das 33 mil cartas de Napoleão fundamentais para esta biografia, existem muitas outras que ainda não foram publicadas, como as que escreveu para a família, marechais, ministros e outros governantes.”

A vida privada de Napoleão também é examinada, como a contabilidade das amantes que teve: “Pelo menos vinte e duas amantes, mas podem ser até 27. Essa parte confirma-se nos documentos do tesouro francês sobre o registo das despesas com essas mulheres, pois era quem financiava os seus amores. No entanto, só três ou quatro foram importantes a nível emocional, com grande destaque para Josefina.”

O historiador deixa na Introdução a promessa de tentar não se deixar influenciar por interpretações anteriores. Considera que foi possível e justifica: “Uma das razões para os leitores comprarem livros de História é devido ao desejo de terem visões novas e objetivas. Quando comecei não queria que fosse um estudo pró-Napoleão; espero que tenha sido capaz de dar a esses leitores, muitos dos quais não gostam dele, uma informação o mais completa possível para formarem uma opinião.” Após ter terminado o livro, qual foi a conclusão a que chegou: foi pró-Napoleão ou não? Responde: “A minha opinião fica bem clara no título: Napoleão - O Grande. Cometeu erros terríveis, era capaz de ser muito cruel, no entanto foi alguém que levou a França e uma grande parte da Europa para o século XIX devido às suas grandes reformas e mudanças sociais.”

Sendo um livro publicado há dez anos, terá Andrew Roberts mudado de opinião sobre o biografado. “Não”, diz logo, para acrescentar: “O meu interesse em Napoleão mantém-se, daí o livro que estou a escrever agora, Napoleão e os seus Marechais. Quero saber das dificuldades dos seus subordinados, porque ele enviava constantemente novas ordens, muitas bastante bruscas. Agora, por exemplo, reconheço mais do que há dez anos o quanto seria irritante estar sob as ordens de Napoleão.”

Napoleão - O Grande
Andrew Roberts
D.Quixote
971 páginas

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Do Princípio até ao Presente

A história de Angola é um terreno em que as plantas pouco têm florescido enquanto livros, daí que o espesso estudo de Alberto Oliveira Pinto ganhe um enorme destaque, até porque o seu subtítulo, Da Pré-História ao Início do Século XXI, oferece a esperança de se ter um manual sobre o passado de um país em que estes faltam. Abundam os relatos literários, algumas sebentas parciais, mas nada como este volume que se apresenta com o título de História de Angola. O autor confessa que “não esgota” nesta “primeira tentativa de um angolano narrar e explicar” a história do país, nem de apagar uma crença de que essa História tem menos de meia-dúzia de décadas, e que não se iniciou “em 1975, com a independência do Estado angolano”. Tudo começa na Idade do Ferro com os povos Kung e Bantu, passa pelos mitos historiográficos em torno das viagens de Diogo Cão, para terminar na luta pela independência e na Guerra Civil. Pelo meio existem oitocentas páginas em que desagua a história oral, o apuramento de factos, a desmistificação de acontecimentos, um manancial de histórias e uma visão ideológica final, tudo a par de uma cronologia fundamental para o estabelecimento ansiado de uma história de Angola.

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