No filme Quando Chega o Outono, a história de Michelle (Hélène Vincent) e Marie-Claude (Josiane Balasko) parece começar como uma crónica mais ou menos piedosa, com tempero de telenovela, sobre os clichés da chamada terceira idade. Não é o caso, entenda-se… Na verdade, elas são duas velhas senhoras que vivem numa acolhedora aldeia da Borgonha, mantendo uma amizade radiosa, ainda que toldada por conflitos com a geração anterior. Assim, a relação de Michelle com a filha, Valérie (Ludivine Sagnier), é tudo menos pacífica, e tanto mais quanto, na sua última visita, a mãe lhe serviu uns cogumelos que a levaram de emergência para o hospital; entretanto, Vincent (Pierre Lotin), filho de Marie-Claude, está na prisão….Provavelmente, noutro filme, com um outro realizador, estas mesmas peripécias seriam tratadas de forma fútil, mais ou menos caricatural. Acontece que estamos perante um título assinado por François Ozon (n. 1967), cineasta que continua a ser um dos poucos autores franceses a saber manter uma relação ágil e inventiva com a grande tradição do melodrama - lembremos apenas os exemplos modelares de Sob a Areia (2000), O Tempo Que Resta (2005) ou Frantz (2016), este último projetando o seu cinema para uma memória histórica (da Primeira Guerra Mundial) francamente invulgar..A dinâmica narrativa dessa tradição - a que não é estranha a herança de mestres clássicos como Jean Renoir, Sacha Guitry ou Jacques Becker - pode envolver uma curiosa componente moral, típica das histórias policiais. Digamos, de crime e castigo..Assim acontece em Quando Chega o Outono, já que a tragédia vai abalar aquela pequena comunidade, relançando uma perversa partilha de culpas, agravada pelos pecados do passado de Michelle e Marie-Claude….Como acontece no cinema de Renoir, justamente, Ozon resiste à facilidade moralista de sobrepor uma qualquer “razão”, unívoca e universal, aos comportamentos das suas personagens, não desistindo de procurar, detalhar e expor as “razões” que as levam a agir de forma insólita, por vezes incompreensível..Será essa, no fundo, a verdadeira dimensão policial desta arte narrativa que começa sempre numa paciente atenção às singularidades de cada ser humano..Daí o valor insubstituível do trabalho dos intérpretes, a começar por Hélène Vincent, grande dama do teatro francês com uma importante, ainda que discreta, filmografia - vimo-la, por exemplo, em Graças a Deus (2018), outra realização de Ozon, em que Josiane Balasko também participava. A sua verdade humana não pode ser dissociada da presença de uma natureza primordial em que o Bem e o Mal convivem de forma inusitada: este é mesmo um filme em que as formas e as cores do outono existem como verdadeiras personagens.