Qual o valor das imagens e dos sons?
Discutir os modos de existência, produção e difusão dos documentários deste nosso século XXI envolve também o conhecimento do passado que, direta ou indiretamente, neles ecoa. Daí um sublinhado para o valor didático de uma sessão muito especial do Doclisboa integrada na secção “Da Terra à Lua”. Nela poderemos ver ou rever Ici et Ailleurs (1976), do francês Jean-Luc Godard, neste caso partilhando a realização com Anne-Marie Miéville, e De Palestijnen (1975), do holandês Johan van der Keuken - será na Cinemateca, dia 18, às 15h30.
Estamos perante filmes nascidos da vontade de enquadrar historicamente os palestinianos, envolvendo necessariamente a história do estado de Israel e, mais do que isso, as convulsões do Médio Oriente. O filme de Godard foi gerado a partir de um convite da Organização de Libertação da Palestina (OLP) endereçado, em 1970, ao Grupo Dziga Vertov (que, além de Godard e Miéville, integrava Jean-Pierre Gorin) - objetivo: documentar a vida no campo de refugiados em Amman, na Jordânia. Quanto à realização de Johan van der Keuken, reflete o seu empenho em tratar os contextos mais diversos a partir de um lógica eminentemente individual - e tanto mais quanto ele foi quase sempre o operador e narrador dos seus filmes.
Importa manter alguma distanciação em relação ao conteúdo desta sessão. Isto porque é possível, creio que será mesmo inevitável, que Ici et Ailleurs e De Palestijnen suscitem diversos paralelismos com a guerra que está a dilacerar as mesmas paisagens em que foram filmados. Ora, talvez seja útil reconhecer que qualquer colagem ou sobreposição automática entre as notícias que recebemos, aqui e agora, e as imagens e os sons registados a uma distância de meio século corre o risco de se esgotar num anódino esquematismo moral e político.
O filme de Johan van der Keuken parte de uma perspetiva de raiz informativa, mais ligada aos modelos do chamado jornalismo de investigação (noção que, em qualquer caso, em décadas mais recentes, tem sido torpedeada por algumas formas de sensacionalismo televisivo). De Palestijnen tem tanto de constatação documental (por exemplo, a destruição resultante de bombardeamentos israelitas) como de argumentação analítica (em particular no modo como refere o papel das elites do Líbano na repressão dos palestinianos).
O cinema aqui e algures
O filme de Godard é, de uma só vez, mais fragmentário na sua estrutura e mais ambíguo nas suas significações. Na verdade, o projeto seria interrompido ainda em 1970, devido à eclosão do chamado Setembro Negro (opondo o exército do rei Hussein da Jordânia aos fedayins da OLP). O material recolhido permaneceu sem tratamento ao longo de quatro anos, até que Godard e Miéville decidiram revê-lo e reavaliá-lo. E não tanto à luz dos acontecimentos posteriores no Médio Oriente, antes questionando o seu valor intrínseco, procurando compreender o que significa ir filmar um lugar distante para, mais tarde, o tratar noutro contexto - recorde-se a tradução literal do título: “Aqui e algures”.
Ici et Ailleurs passou a ser um objeto dúplice, dir-se-ia esquizofrénico: reconhecendo a teatralidade “militante” daquilo que filmaram, Godard e Miéville acrescentaram um segundo capítulo, agora encenado em França. Nele deparamos com uma família francesa a conhecer (ou desconhecer) o mundo através do seu televisor, suscitando dúvidas que talvez se possam resumir numa interrogação: que significa mostrar no nosso país as imagens e sons que trouxemos de outro país?
Contemporâneo de outro título de Godard, Número Dois (1975), objeto revolucionário na discussão das retóricas televisivas, Ici e Ailleurs relança uma verdade primitiva, anímica e filosófica, cuja pertinência os anos reforçaram de forma dramática: “os outros são o algures do nosso aqui”.