Por conta e risco de Albert Serra

A Polinésia francesa e a sua luz sensual por Albert Serra, cineasta catalão em fase de aclamação num filme que foi um dos casos da competição de Cannes 2022. Pacifiction divide mas tem um ator consensual: Benoît Magimel sob influência. Um dos seus produtores é o português Joaquim Sapinho.

O pós-colonialismo francês nestes dias numa fantasia tempestuosa de um cineasta catalão que se tornou do mundo. Pacifiction foi o filme mais amado pela imprensa francesa no último Festival de Cannes e, mesmo sem palmarés, ganhou figura de "filme de 2022" em França: chegou aos Césares, liderou lista dos melhores do ano e deu a consagração total a Albert Serra. O que está aqui em causa? Filmar um abandono paranóico? Captar uma sensação de vazio do imaginário do Taiti? Tudo isso, provavelmente, mas sobretudo suspender a crença num conto sem humanismo do papel do Estado e da sua falência, aqui representado por um alto-comissário francês que é interpretado por Benoît Magimel, o maior ator francês da sua geração. Representação de uma ideia de queda francesa, de fim de paraíso. O seu De Roller, diplomata de charme afável, de blazer branco imaculado, tenta controlar essa ideia romântica da Polinésia francesa, por entre ondas verdes e céus azuis e paradisíacos. Um homem cujo poder e persuasão se fundem nessa ordem das paranoias das conspirações nucleares geo-estratégicas.

Serra, como sempre, pede para o espectador acreditar no risco: deixar-se cair no escuro. Um salto que acarreta longos planos-sequência, algum pedantismo barroco, silêncios, diálogos improvisados e uma quantidade de enigmas que nunca farão sentido. Essa é a força mas também a perdição do projeto - por muito prazer que estas imagens de beleza majestosa provoquem há sempre uma afectação teimosa. Na viagem a esta ilha sensual fica ainda uma ideia de suspense experimental, um aroma a morte suspensa. Do risco nascem magníficos momentos de cinema em estado puro. A câmara do catalão parece mais livre do que nunca, este é quase de certeza o seu melhor filme, mesmo quando se sente alguma batota no processo.

Numa altura em que o cinema em França tem medo de se desprender dos cabos narrativos, aparecer um cineasta de fora que dá este impulso de liberdade a uma história que é guiada por ambientes, é um triunfo de registar. Pacifiction- Tourment sur Les Îles funciona como um ensaio sobre a civilização, um filme que dá luta, daqueles que guina para onde a vontadinha do público formatado é sempre contrariada. Vamos, de alguma forma, ao sabor da performance de Magimel. É do ator que parece seguir a batuta para esta variação de investigação sobre as ordens das coisas, afinal de contas, aquilo que se entende como "política". E aí, precisamente nesse princípio, cabe-nos a nós planar na intriga. Planar, navegar ou surfar, dependendo do grau deste enxerto de niilismo por conta e risco de Serra.

Se o cinema contemporâneo esgotou as possibilidades do filme de espionagem, desta vez há ainda esperança. A farsa em forma de balada sustenta essa hipótese. No fim, o espião pode ser o espectador, sobretudo se souber estar aberto a ser seduzido com uma decadência de velho mundo. Porque o sensual e o político podem dar as mãos. Por isso, exatamente por isso, é um happening que empolga de mansinho. Não é uma obra-prima como muitos vão gritar mas é um sinal de que Albert Serra está cada vez melhor cineasta.

dnot@dn.pt

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