Poesia: um filme da Coreia que ensina a escrever para dentro
O nome do sul-coreano Lee Chang-Dong deu-se a conhecer nas salas de cinema portuguesas no longínquo ano de 2011 com um título elementar e delicado: Poesia. Quem é que ainda se lembra dele? Foi uma descoberta preciosa, na altura. E se dúvidas houvesse, o valor deste cineasta, com algumas obras anteriores não estreadas por cá, foi corroborado com o mais recente e muito aplaudido Em Chamas, o filme que parte de um conto de Haruki Murakami e que fez furor entre a crítica no Festival de Cannes de 2018.
A novidade é que, a partir desta quinta-feira e até sábado, o distante Poesia poderá ser redescoberto através de um link de acesso disponibilizado pela Medeia Filmes nas suas páginas doFacebook e Instagram. Uma iniciativa desta exibidora que procura cobrir as necessidades cinéfilas durante os dias de isolamento em casa, devido à ameaça do novo coronavírus, continuando a programar bom cinema fora da sala escura do Espaço Nimas, em Lisboa.
Poesia surge, assim, ainda próximo do dia em que se comemora esse género literário, como uma proposta belíssima para tempos taciturnos. Entenda-se: não se trata de uma aprazível comédia com pozinhos mágicos, nem algo que se pareça, mas pode ser visto como um luminoso melodrama cujos traços de tragédia alcançam uma respiração peculiar na expressão de resiliência da sua protagonista sexagenária (Yun Jeong-hee).
Esta, elegante e humilde, vive numa pequena cidade da Coreia do Sul com o seu neto, um adolescente perdido no lado obscuro da adolescência, e ganha o sustento através de regulares serviços de enfermagem em casa de um homem inválido. No dia em que se depara ela própria com os primeiros sinais de uma doença - Alzheimer - decide inscrever-se num curso de poesia como que à procura da afinidade básica com a vida e a natureza. Por exemplo, na contemplação de uma árvore ou de uma maçã.
Lee Chang-Dong, que também assina o argumento original, podia deixar-se ficar por esta premissa simples: uma mulher a renovar o seu interesse pelas pequenas coisas da vida depois de saber que a memória, dentro de pouco tempo, lhe falhará. Mas é no cruzamento disto com o caso do suicídio de uma jovem estudante - a qual se sabe desde logo ter sido violada por um grupo de rapazes, entre eles o neto da mulher - que a história adquire contornos muito dramáticos. A protagonista, usando da arte de uma serenidade dorida, irá manter um diálogo interior (em certa medida, uma contínua conversação "poética") com o espírito dessa jovem molestada, numa espécie de tentativa de remissão do pecado de alguém que acontece ser a boca que ela alimenta todos os dias, alguém do seu próprio sangue. E o filme constrói-se sobre o seu desejo de escrever um único poema. O poema justo. O poema capaz de atravessar a crueldade e encontrar a forma perfeita de uma despedida.
Apetece dizer que Poesia, nas suas duas horas e pouco de duração, representa o tempo da escrita desse poema. Os gestos e decisões desta mulher a braços com a sua realidade que, no fundo, é uma encruzilhada secreta, fazem germinar uma inspiração desconhecida. A maravilha está aí. Ou por outras palavras: Em Chamas pode ser a grande sensação do cinema de Lee Chang-Dong, mas Poesia é a sua pedra preciosa, filme de uma sabedoria cristalina, sem recurso à lágrima fácil.