Aos 50 anos é um ator num período de grande visibilidade no cinema, seja em papéis secundários, seja como protagonista, como acontece agora em Os Papéis do Inglês, de Sérgio Graciano, viagem ao universo literário e pessoal de Ruy Duarte de Carvalho, cineasta, poeta e antropólogo angolano. Antes, foi visto em O Bêbado, de André Marques, Revolução (sem) Sangue, de Rui Pedro Sousa, A Pedra Sonha dar Flor, de Rodrigo Areias, O Pior Homem de Londres, também de Rodrigo Areias, Diálogos depois do Fim, de Tiago Guedes, Soares é Fixe, de Sérgio Graciano, Grand Tour, de Miguel Gomes, e as séries Rabo de Peixe e Irreversível. É impressionante, sobretudo se pensarmos que, no meio de tudo isto, foi imperial como Peter Handke na peça de João Lourenço, Tempestade Ainda. Erga-se uma catedral a um dos nossos grandes atores que chegou de metro a um bar onde aconteceu esta entrevista: “sou um ator do metro”. Com ele, não há métodos… Tem alguma perceção de como é visto pelo grande público? Infelizmente acho que não sou visto pelo grande público. Essa é uma das questões que atravessa a nossa profissão: podemos estar décadas a trabalhar como artista em Portugal e ser completamente anónimo..Esse anonimato também traz coisas boas? Em teoria sim, na prática nenhuma. Na teoria para uma certa retórica mística, tipo o artista “isolado”, mas como em outras áreas, quem não é reconhecido, fica num patamar desigual nas questões da vida prática, nomeadamente financeiras e de precariedade. Creio que isso em Portugal ficou mais agudizado..Os Papéis do Inglês parece convocar uma certa assombração do deserto. Vocês os atores sentiram isso na pele? Parece que a força daquela paisagem do Namibe se apodera da própria atmosfera das imagens… Um dos assistentes de imagem olhava para mim lá e perguntava-me se eu estava a meditar. Ele achava estranho eu ficar muitas vezes parado a olhar para aquilo e eu só respondia “como não!?”. O Ruy Duarte de Carvalho dizia que não és tu que vês o deserto, é o deserto que te vê….O deserto transformou-o? Sim, penso que sim. Para o Ruy, a experiência com a relação com o deserto foi algo transformadora..E para este filme também, certo? Exato! Falámos muito disso nos ensaios e isso era algo muito profundo na obra do Ruy - sente-se isso muito nos livros, na poesia e também nas suas reflexões. Ele próprio dá essa chave na relação com o cinema. Num dos textos ele faz uma espécie de desafio epistolar a um amigo para visitar aquele lugar e pergunta-lhe se ele estava pronto para enfrentar o presente e avisa-o que será algo bem físico e que era preciso preparar as objetivas e as distâncias focais, usando metáforas de cinema como se fosse uma câmara. Era um pouco essa metáfora de quando se começa a filmar torna-se impossível não filmar o deserto. Quem está naquele deserto sente-se obrigado a filmá-lo. Foi através do cinema que ele o percebeu. Estando lá é muito natural e o cinema dele é muito importante, mesmo com todo aquele lado antropológico e etnográfico..Os Papéis do Inglês inevitavelmente obriga-nos a fazer uma reflexão da condição de colonizadores que todos nós carregamos… Sim, no outro dia via a série do Raoul Peck Exterminate All the Brutes e pensava na dimensão do papel da escravatura de Portugal… Não consigo muito falar sobre isso porque não nos foi dada a História como deve ser. Uma História do ponto de vista plural para analisarmos todos os lados da questão. Estou naquele choque de agora começar a perceber certas coisas, sobretudo por podermos ter acesso a dados contemporâneos de como as elites portuguesas se construíram. O senhor do Smithsonian quando veio à Culturgest falava sobre isso, sobre como essas elites económicas que se estabeleceram com muita força à base da escravatura e que ainda hoje se sustêm. A nossa sociedade ainda tem resquícios disso..Compreende quando Ruy Duarte de Carvalho não quis regressar a Portugal e quis ser angolano? Compreendo, ele quis deixar de ser português. Estamos a falar da História, mas, no seu caso, há uma coisa muito pessoal e íntima entre ele e aquele lugar. Foi logo na sua infância, quando visitou com o pai o deserto, que se estabeleceu aquela relação..Tivemos este fim-de-semana Whoopi Goldberg a dizer no Tribeca Festival que é preciso as pessoas saberem assumir os seus méritos e os artistas não serem humildes. Sente que, por outro lado, é saudável um ator desconfiar dos seus méritos, pôr-se em causa? Eu estou sempre a desconfiar do que faço, esse é o motor essencial para um ator estar em movimento. Essa é uma questão complexa. Como o Ruy dizia: os nós dos problemas estão connosco e para mim isso sucede tentando mergulhar no universo de cada filme, de cada peça de teatro. É por isso que gostei de Os Papéis do Inglês, onde o autor é um mundo. Era muito diferente ir para aquele deserto de Moçâmedes em modo de página em branco ou chegar lá com a imagem da mandala da Terceira Metade, desenhada pela personagem do Trindade, com todas as luas, sons e usos das palavras… Foi uma coisa irracional, inundou a minha imaginação..Há 22 anos teve o seu primeiro grande espectáculo em Lisboa com Peer Gynt, no Teatro Aberto. Recentemente, foi nomeado ao Globo de Ouro com o seu regresso lá, onde interpretava Peter Handke na sua peça Tempestade Ainda. Foi como que um fechar de um ciclo? Sim, foi muito interessante quando saía de uma das representações um casal parabenizou-me e o senhor, cego, ao reconhecer a minha voz disse que se lembrava de mim ali no Peer Gynt e lembrava-se que eu tinha 28 anos! Reconheceu-me com a voz!