Pode um cego fotografar?
"Tem que se perceber, e é o tempo que nos ensina isso, que de repente deixamos de ter cão e vamos ter de passar a caçar com gato, porque o importante é caçar. Nós não deixámos de ver. Agora vemos de outra maneira, com outros olhos", diz Duarte Pina, de 55 anos. Começou a ter de caçar com gato aos 11, a idade que tinha quando cegou. O médico sossegou-lhe o maior medo: poderia estudar, aprender, ler, mas fá-lo-ia com o tato, em braille.
Falamos em frente da sua fotografia na exposição Ver com outros olhos, na Fundação Calouste Gulbenkian. Na imagem está rodeado por um grupo, evocando o ambiente de uma tertúlia, e por detrás veem-se versos de "Pastelaria", o poema de Mário Cesariny. Não por acaso. "Há aqui coisas importantes. Quando se diz: 'Que afinal o que importa é não ter medo / de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: / Gerente! Este leite está azedo!' É muito importante que não nos resignemos. Nos dias de hoje, numa sociedade que às vezes, teimosamente, nos quer formatar, é muito importante que denunciemos, como muitos outros fizeram em tempos mais adversos, e que não tiveram medo de dizer que o leite estava azedo."
Parece paradoxal a ideia de ter uma sala repleta de fotografias tiradas por quem nunca as vai poder ver: pessoas cegas ou com baixa visão. Mas lá estão elas. A de Duarte Pina, as de José Sobreira, que "cegou de desgosto", por via do sistema nervoso, depois de, em dois anos, os seus dois filhos morrerem de cancro, contam Luís Rocha e Tânia Araújo, respetivamente diretor artístico e produtora deste projeto desenvolvido pelo MEF - Movimento de Expressão Fotográfica, e apoiado há três anos pela Gulbenkian através da iniciativa PARTIS - Práticas Artísticas para a Inclusão Social.
José Sobreira, de 62 anos, escolheu mostrar os filhos que perdeu. Andreia Monteiro, por exemplo, de 24, fotografou-se com o filho pequeno. Lemos na legenda da imagem: "Fiquei sem palavras quando me perguntaram se eu podia cuidar do meu filho. Uma pessoa cega pode cuidar de um bebé". Paulo Neves, de 42, surge com a cabeça dentro de uma gaiola: "O antes em que eu era livre, via, conduzia e o presente que é a cegueira, que é uma prisão. Sinto-me preso e antes era livre".
O Bruno tem 13 anos e fotografou-se no milheiral da sua família, vestido de fato completo, para mostrar que o que importa é o trabalho que se faz, e não a roupa que se usa. Marta, próxima em termos de idade, fotografou-se deitada, fingindo dormir, na sua quinta. Porquê? Pelas muitas vezes em que lhe perguntaram se os cegos dormiam de olhos abertos ou fechados.
Por baixo de cada uma das fotografias na parede podemos experimentá-las com o tato, pois estão transpostas em relevo. Se pusermos os headphones, a audiodescrição guia o nosso tato explicando o que representa cada linha que sentimos.
Por detrás de cada uma daquelas fotografias está um testemunho, afirma Luís Rocha, guiando-nos pela mostra. "Acho que tem sobretudo a ver com testemunho:Estou aqui, sou assim. Olhem para nós, cegos, que se calhar somos tão ou mais valiosos para a sociedade como vocês."
O projeto começou com uma formação que atravessou as várias correntes artísticas. Por exemplo, quando passaram pelo Expressionismo, os participantes percorreram com as mãos a icónica obra de Edvard Munch, O Grito, com relevo e textura para que o percebessem.
"Uma imagem fotográfica traz vários fatores, como a memória, os sentimentos e as emoções. Na realidade, [pela forma] como olhamos para ela, a imagem é muito mais do que meramente visual, o que quer dizer que uma pessoa privada da visão também consegue produzir uma imagem, com todos os outros sentidos que não o da visão" explica Luís Rocha.
"Uma pessoa cega consegue produzir fotografias como qualquer outra pessoa, mas precisa de outros olhos para a orientar. Mal comparando, o atleta que corre precisa de alguém que o guie pelo caminho. Para nós os fotógrafos são eles. Nós fomos os técnicos. Por exemplo, usámos projetores de luz contínua, porque provocam calor e a pessoa que não vê percebe que é daqui que vem a luz", continua.
"É preciso desconstruir estes mitos todos"
Depois de cegar, Duarte Pina não deixou de caçar com gato, para continuar a usar a expressão que empregou. "Sou um leitor compulsivo", afirma, evocando depois Camões, Aristóteles, Cesariny ou Gabriel García Márquez. Estudou Línguas e Literaturas Portuguesas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e foi professor de português, francês e técnicas de tradução, além das explicações de latim que foi dando. Fez as suas leituras em braille, audiolivros, ou contando com vozes de outros, como os colegas de faculdade.
Fazemos-lhe a pergunta óbvia: como concebe um cego uma imagem, como aconteceu aqui. "Antes de perder a visão ocular, contactava com fotografias. 40 e tal anos passados as imagens ficam lá. A memoria retém tudo. Sei o que é o pôr-do-sol, o luar, a luz. E depois há outra coisa importante: a imagem e a palavra não colidem, têm uma relação estreitíssima de cumplicidade e simbiose. Cores, texturas, sons, aromas, sabores: está tudo ligado."
E como que o faz novamente, citando Antonio Machado: "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.Isto pode-se pôr numa fotografia. Esta frase está-nos a dar a imagem do caminhante a prosseguir, a fazer o seu próprio caminho. Automaticamente o nosso cérebro vai construir aquela imagem. Quando leio um livro, eu estou a ver as personagens, estou a ver as paisagens, estou a ouvir as vozes. Elas aparecem."
Duarte Pina gosta de cinema. Gosta de escutar os ambientes, os diálogos, com ou sem audiodescrição. E tem favoritos: Manoel de Oliveira e Andrei Tarkovsky. "Há muita gente que pensa que a perda da visão implica a perda dos outros sentidos. Uma vez houve alguém que me perguntou: Como é que vocês sabem se a água está fria? Há perguntas muito recorrente: 'Como é que as pessoas cegas fazem sexo?' Como é que jogam às cartas?' É preciso desconstruir estes mitos todos. Depois acham que o indivíduo cego é herói ou mártir. Nem um nem outro."
Não é apenas a exposição que é acessível a pessoas com deficiência visual. Tânia Araújo chama atenção para o chão que pisamos. No topo da grande escadaria do edifício sede da Gulbenkian - que leva à exposição - os pés podem agora sentir o sinal de que o piso vai mudar. Sinais que Ver com outros olhos trouxe, e que ali permanecerão.
A entrada da exposição, patente até 12 de novembro, é livre.