Pérez-Reverte: “Admiro Zapata, mas não me teria emborrachado com ele. Com Pancho Villa sim”
Começo por lhe perguntar sobre Martín Garret, esse engenheiro de minas espanhol que é a personagem principal do seu livro sobre o México, e que personifica como uma revolução pode mudar um homem, revelar o que há de melhor e de pior nele. Este seu Revolução também é sobre a revolução numa pessoa?
Claro. É um romance de aprendizagem, de formação de um jovem, que não é ninguém e, na guerra, na revolução, na violência, no sexo, em muita outras coisas, encontra a maturidade. É a transformação de um jovem num adulto. Eu poderia ter escolhido muitos territórios, mas há um território pessoal, que foi o meu. No meu caso, a guerra. Eu fui para a guerra com 20 anos e passei 21 anos nela, então boa parte de quem sou, da minha maneira de ver as coisas, devo-o não à guerra, mas às circunstâncias que a guerra gera.
Está a falar dos seus tempos de repórter de guerra, como na Jugoslávia, que deu origem ao já célebre Território Comanche?
Como repórter de guerra, claro. Decidi que era bom para a minha personagem proporcionar-lhe uma experiência semelhante à minha. E por certas razões, escolhi a Revolução Mexicana. Não é um romance de guerra, nem de revolução, é um romance onde a revolução, a guerra, transforma um jovem num adulto. No início, ele só observa, ajuda porque lhe mandam, mas no final age por sua vontade e acaba por ser também um protagonista da revolução.
Tem aqui Martín Garret como protagonista ficcional, mas há outros protagonistas, figuras históricas como Pancho Villa, que é muito importante no livro, ou Emiliano Zapata, não tão importante no livro, mas que é uma figura mítica. São homens que se tornaram mais do que mexicanos, são universais? Pancho Villa tem um apelo especial para si?
Quando decidi escrever o romance sobre a revolução, tive de escolher entre Zapata e Pancho Villa. Zapata era o sul, o índio do sul, triste, trágico, com o destino já escrito na testa. Pancho Villa era o bandido. Ou seja, Zapata era o idealista, realmente um homem bom que acreditava na revolução. Pancho Villa era um bandido, era um delinquente, para quem a revolução era uma aventura de tiros, de mulheres, de saques. Era mais alegre, no sentido narrativo, o norte do que no sul. Por isso escolhi o norte, a música, as canções. Conheço muito bem o norte do México. Foi assim uma escolha técnica. Um romance é um problema que se deve resolver com ferramentas narrativas. Para mim, o meu romance era mais eficaz no norte do que no sul.
Identifica-se mais com Zapata?
Ideologicamente com Zapata, temperamentalmente com Pancho Villa. Admiro Zapata, mas não me teria emborrachado com ele. Com Pancho Villa sim. Me emborracharia. Essa é a diferença. Villa é uma personagem fascinante.
Há duas personagens secundárias que me impressionaram: Genovevo Garza e Maclovia Ángeles, um guerrilheiro e a sua companheira, também mulher de armas. Representam os mexicanos? É uma homenagem ao mexicano comum?
Conheço muito bem o México, vou lá muitas vezes. Na verdade, o meu romance Rainha do Sul é já um romance clássico no México. E até há uma série de televisão. Amo muito o México. E o que gosto no México é daquela mistura de crueldade e bondade. De inocência e barbárie. De perigo e ternura Então, Maclovia e Genovevo para mim refletem o melhor do México, a inocência atraiçoada. No fundo, a revolução foi atraiçoada.
Foi uma revolução atraiçoada?
Claro que foi uma revolução atraiçoada. Bom, vai-se ao México e diz-se: e tudo isso por isso? Continuar como antes? Então é por isso que Genovevo Garza simboliza para mim o melhor que o mexicano tem. A capacidade de sacrifício, de luta, de inocência, de coragem.
Quando penso no México estamos a falar da antiga Nova Espanha, de um país que começa a sua independência como um império, com o imperador Iturbide, e depois até chega a ter outro imperador, Maximiliano, um Habsburgo. O presidente Porfírio Diaz, que governou muitos anos, deixou aquela célebre frase, do “pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”, país para o qual perdeu muito território. Quando olha para o México, um século depois da Revolução que conta no livro, sente ser um país ainda com o potencial por cumprir?
É um país muito rico e extraordinário. Mas é um país que foi esmagado primeiro pelos espanhóis E depois pelos americanos. E também pelos próprios mexicanos. É um país infeliz, porque tem recursos extraordinários, mas mesmo assim não avançou como devia.
Mas é um país democrático, que depois de décadas de governo do Partido Revolucionário Institucional, o tal do nome contraditório, passou a ter alternância política. E no passado até foi país refúgio, por exemplo, para muitos republicanos espanhóis, fugidos da ditadura do general Franco.
Foi. Foi, mas já não o é. Já que saímos do romance, deixe-me dizer que toda a América Latina é um projeto fracassado. Toda. Há uma estranha maldição. Desde a independência, há dois séculos, nenhum país, nem mesmo o Brasil, conseguiu alcançar estabilidade política e económica. São países ricos, mas foram espoliados pelos estrangeiros, e pelos próprios nacionais, basta ver o que acontece na Venezuela. Mas toda a América Latina é um caso lamentável.
Há culpa dos colonizadores ibéricos, uma responsabilidade histórica de Espanha e de Portugal?
Não há aqui nenhuma falha histórica de Portugal e de Espanha. Foram-se embora há 200 anos. É um problema dos latino-americanos. Tiveram muito tempo para se regenerar.
Quando no seu romance coloca personagens como o militar, rival sentimental mas que salvou Martín Garret de um fuzilamento, o capitão Jacinto Córdova, a contar que o pai e outro homem discutiram e resolveram a questão de honra apontando-se mutuamente, encostando ambos uma pistola à cabeça do outro, isso é autêntico? Pode acontecer no México?
Acontece no México, sim. No México, a vida não vale nada. O México tem uma coisa única, que é ter herdado o orgulho dos índios. Os índios são muito orgulhosos. E corajosos. E também herdaram esse orgulho dos espanhóis. Então no México, o machismo, a hombrada, é muito presente. Dizer que se é mais macho do que alguém é arriscar a vida. É muito normal esse tipo de violência por honra. Essa cena é uma cena comum.
Diz ser um país sexista, mas agora elegeu uma mulher presidente.
Não deixa de ser um país sexista
É um escritor popular no México? Os seus romances vendem-se bem naquele que com 130 milhões de habitantes é o mais populoso dos países de língua espanhola?
A Rainha do Sul tornou-me muito conhecido. Sou um escritor espanhol muito conhecido no México.
Houve polémica no México com este seu Revolução?
Foi muito bem recebido o livro, e vai ser série televisiva. No México, os meus leitores conhecem-me há muito tempo. É um livro deles também. O livro é uma homenagem aos homens e mulheres da revolução. Então não foi nada mal compreendido. Pelo contrário. É uma homenagem aos mexicanos.
Há um pormenor no livro que também me chocou. Estamos a falar de um livro que se passa no início do século XX, já quase um século depois da independência. Mas muitas vezes fala-se em hostilidade aos espanhóis. Porquê?
Sim, porque Pancho Villa era anti-espanhol. Pancho Villa dizia que os males do México se deviam à presença espanhola lá. Quando via espanhóis, mandava matá-los. Odiava os espanhóis.
Estamos a falar, nessa imigração já para o México independente, de classes populares ou meramente de capitalistas?
Houve as duas. Houve grandes fortunas de origem espanhola. Algumas desde antes da independência. E depois houve uma migração de uma baixa burguesia, uma classe média, que eram comerciantes, lojistas, donos de restaurantes. E Pancho Villa odiava-os a todos. Ele disse que os espanhóis foram a praga do México, a causa de todos os males.
A palavra para espanhol, gachupin, que usam no romance, tem algum significado?
Não, gachupin, espanhol ou estrangeiro. Ainda nos chamam de gachupines hoje.
Fala do fracasso da Revolução Mexicana de 1910-1920, mas a 1 de janeiro de 1994 o mundo acordou para o novo ano com a notícia de uma revolta de inspiração zapatista no sul do México. Essa revolta para denunciar o início do acordo de livre comércio entre o México, os Estados Unidos e o Canadá interessou-o como jornalista? Como escritor?
No inicio, interessei-me. Mas depois acabou como tudo sempre acaba. Criou-se um feudo no sul. Uma espécie de estado independente dentro do México, de que ninguém fala, mas, de facto, não há ali controlo governamental.
Lembro-me de que muitos escritores visitaram Chiapas para conhecer a revolução zapatista.
Também me convidaram para ir. Não me interessava. Percebi que conhecia pessoas que conheciam o subcomandante Marcos. Mulheres que estudaram com ele na universidade. Percebi o que estava a acontecer. Não tinha interesse em apoiar um movimento destes com a minha presença. Não quero meter-me nestas coisas, dizer mais. Há muito oportunismo.
Tem uma curiosa referência no livro à Revolução Portuguesa de 1910, a que costumamos chamar de Implantação da República. Mas estou mais interessado em perguntar-lhe sobre a Revolução Portuguesa de 1974. E sobre o impacto que teve o 25 de Abril em Espanha, onde a democracia chegou via uma transição só iniciada depois da morte de Francisco Franco em finais de 1975.
Acredito que a Revolução Portuguesa ajudou a transição espanhola. Foi uma revolução armada, mas não foi muito violenta. Tornou mais fácil para os espanhóis fazerem o que fizeram depois da morte de Franco. Sem a Revolução Portuguesa, talvez a espanhola tivesse sido mais lenta, ou mais tarde. Ou não tivesse ocorrido. Acho que foi o gatilho. Foi um exemplo maravilhoso, excelente, de como um povo pode perfeitamente, sem violência excessiva, mudar o país. Admiro muito a revolução portuguesa.
Foi um dos espanhóis que viajou de carro até Portugal para ver a Revolução dos Cravos?
Não, estava em reportagem no Médio Oriente. Mas admirei muito a vossa Revolução. E acompanhei muito de perto. Depois fui cobrir a guerra em Angola e em Moçambique, a guerra pós-colonial. A Revolução Portuguesa foi um esplêndido exemplo de como, acho muito interessante, aqueles jovens soldados que estiveram em África, que conheciam o inimigo, que estudavam o inimigo para combatê-lo, no regresso aplicaram os métodos aqui e acabaram com uma ditadura. Dessa forma não violenta, quase sem violência. Mas é por isso que me incomoda a falta de reconhecimento que encontro hoje pelos capitães de Abril Estão no filme de Maria de Medeiros. Mas não vejo nada mais. Eles desapareceram, foi tudo apagado, como se incomodasse a sua memória. Acho que Portugal foi injusto com aquela gente. Alguns entraram na política. Vamos a ver: todas as revoluções terminam pervertida. Todas. Mas isso não diminui o momento em que acontecem. Há um momento de glória. O 25 de Abril foi um dia de glória para Portugal e para a Europa. A reação do povo àqueles jovens soldados que se arriscam, que cantam o Grândola Vila Morena, que saíram dos quartéis, como aquele grande homem que saiu do quartel de Santarém, Salgueiro Maia. Parece-me que, independente do que aconteceu depois, o feito deveria ser homenageado e valorizado. E não está a sê-lo.
Quando fala em revoluções atraiçoadas, há alguma revolução na história da humanidade que lhe diga mais que as outras?
A Revolução Francesa é a revolução com letra maiúscula. Porque o que os franceses fazem em 1789 é que muda tudo. Até à Revolução Francesa, pensava-se que o trono, o altar, Deus e o rei eram intocáveis. Mas a Revolução Francesa pela primeira vez perde o respeito. Sim, os ingleses já tinham cortado a cabeça de Carlos I. Mas a Revolução Inglesa não cria ilusão como a Revolução Francesa, essa não era pop art, esta é. Assim, embora a Revolução Francesa termine em terror mostra ao mundo que tudo pode ser mudado. Então a sua influência é enorme. Todos os séculos XIX e XX estão condicionados pela Revolução Francesa. É a Revolução. A grande.
Mas se olhar para o século XX, se olhar até para hoje, século XXI, a Revolução Francesa pesa muito mais do que a Russa, de 1917?
Sim. A Revolução Russa teria sido impossível sem a Francesa. A Revolução Russa faz parte de uma cadeia. A Revolução Francesa dá origem à Russa, um século depois. E tem impacto, mas como toda as revoluções veja como termina, atraiçoada: termina em Lenine, termina em Estaline. Termina com toda essa barbárie estúpida dos gulags e fomes e tudo mais. Acredito em revoluções porque acredito que são necessárias . Há uma parte perversa em mim que quer uma revolução. Que gosta de ver como o caos substitui a ordem É uma parte de mim, desculpem-me. Está no meu temperamento, nas minhas leituras, nos meus estudos, na minha vida. Não consigo evitar que uma revolução me deixe excitado. Mas eu sei que no dia seguinte, tudo será arruinado. Então observo sempre com interesse uma Revolução, como esta no México que está no livro. Mas não tenho muitas esperanças.
Cobriu alguma revolução durante o seu período como jornalista?
Sim, eu fiz aquela em 1989 na Roménia, por exemplo. E também foi uma falsa revolução. Todas acabam mal, mas o momento é magnífico. O momento em que as pessoas saem às ruas. E eu também vivi a do Iraque, em que as pessoas demolem os mitos e os símbolos. E acreditam naquele dia de esperança que amanhã o mundo será melhor. Não é verdade. Mas nesse dia as pessoas estão felizes, as pessoas acreditam que o mundo vai ser melhor. Esse dia vale a pena. No dia seguinte chega o de sempre. A seguir ao Jour de Gloire vem o dia seguinte, vem o de sempre.