Imagine o leitor que tem nas mãos um livro publicado por um departamento estatal que se ocupe das estradas de um território densamente povoado - pode ser Lisboa, Porto ou Hong Kong. Agora retire-lhe todo o texto e encare-o apenas como um objeto estético, algo que pode colorir, por exemplo, transformando aquelas formas geométricas noutra coisa qualquer, uma coisa que seja sua. Esse é o conceito subjacente ao trabalho do artista plástico João Vasco Paiva, que pode ser visto até 13 de junho na Galeria Municipal da Avenida da Índia, em Lisboa. Cut Down the Middle, com curadoria de Claudia Pestana em diálogo com o próprio artista, inclui ainda obras de Heman Chong, Ramiro Guerreiro, Ko Sin Tung e Magdalen Wong, mas o mote é comum a todos: pegar em elementos efémeros, porque não dizer banais, da vida de todos os dias nas grandes cidades, retirá-los do contexto habitual, e mostrá-los assim, como essência..Nascido em Coimbra em 1979, João Vasco Paiva partiu para Hong Kong em 2006, com uma bolsa de mestrado da Fundação Oriente. A estranheza que sentiu à chegada, em boa parte por não dominar o cantonês, acabou por ser um estímulo à criação de um método criativo muito particular: "Esse estado de perdido na tradução, produzido pelo desconhecimento da língua, foi muito interessante do ponto de vista artístico porque convidou à abstração", diz-nos. "O que me interessou em Hong Kong foi ver como as pessoas transformam o espaço público, que é muito diferente do modo como o fazemos aqui, porventura mais livre porque, dada a exiguidade das casas, ali vive-se muito na rua. É como se esta fosse uma extensão das casas e isso é considerado normal." Ao contrário da maioria dos artistas ocidentais, João Vasco não foi para a China em busca do etnográfico, mas sim para algo que habitualmente não é considerado culturalmente relevante, as coisas do dia a dia, "que envelhecem de forma muito rápida, quer porque são muito usadas por muita gente, quer porque estão expostas aos altos níveis de humidade da região." É o caso da escultura Untitled_Sunday IV, de 2017, em que o artista, através de moldagem, reconstitui um caixote de papelão usado pelas empregadas domésticas, quase todas filipinas, nos seus domingos de folga. "Habitualmente elas abrem o caixote, estendem-no no chão e ali se sentam para fazer os seus piqueniques, conversar e até cantar ou dançar. É uma vivência muito própria." Ou ainda da série de esculturas em madeira com imagens de satélite da superfície terrestre, usadas por skateborders em Hong Kong: "O que me interessou aqui é a sobreposição destes dois tipos de mapeamento, o das imagens satélite e as marcas deixadas pelos skates.".Esta possibilidade de ver objetos e lugares descontextualizados permitiu-lhe "manter uma frescura que cá não conseguiria porque quando olhamos algo, o que sabemos sobre ele contamina forçosamente esse olhar". Assim se manteve em Hong Kong durante 12 anos, vindo a Portugal de férias e expondo em vários lugares do mundo, de Nova Iorque, a Zurique, Londres, Roterdão ou Lisboa, onde teve uma exposição (Cargo, de 2016) no Museu de Arte Contemporânea do Chiado. "Quando tinha saudades da nossa comida, o bacalhau, por exemplo, ia a Macau e sabia-me muito bem", recorda..Em Coimbra, onde cresceu, cedo foi estimulado a desenhar e pintar. Neto do dono da editora Figueirinhas, Mário Figueirinhas, contactou muito cedo com os trabalhos dos artistas que ilustravam, por exemplo, os contos infantis de Sophia de Mello Breyner Andresen. "Nunca quis ser outra coisa, admite, sei desde sempre que o meu futuro seria nas Artes Visuais." Por ironia, boa parte dos seus amigos nos anos do Ensino Secundário "era originária de Macau ou portugueses que lá tenham vivido. É possível que esse convívio me tenha criado uma certa predisposição para aquela cultura e modo de estar.".Com a pandemia a apanhá-lo em Nova Iorque, João Vasco voltou a Portugal e está neste momento a partilhar o estúdio de trabalho com Ramiro Guerreiro, também representado nesta exposição. Mas a mudança geográfica não ditou alteração de rota: "Continuo a trabalhar em diálogo com outros artistas que têm afinidades conceptuais comigo, em torno destes temas. O que me fascina é o modo como as pessoas intervêm no espaço público, deixam marcas, sem terem consciência de que estas possam ter um valor cultural ou estético." E dá como exemplo a escultura, presente nesta exposição das Galerias Municipais, em que apresenta os moldes em cimento de um conjunto, empilhado, de garrafões de água, daqueles usados em escritórios: "É muito comum em Hong Kong vermos a rua ocupada com pilhas destes recipientes, o que é um obstáculo para o transeunte e uma apropriação do espaço urbano. Já criei esta peça cá, durante o primeiro confinamento. O esforço físico que me exigiu, porque os moldes são em cimento, permitiu-me concentrar mais no corpo e pensar menos no que nos estava a acontecer.".Sem data para regressar a Hong Kong, João Vasco terá uma nova exposição a partir da primeira quinzena de junho, na Galeria Lehmann+Silva, no Porto. "Mesmo que volte à China, tentarei sempre manter um pé em Portugal", garante..dnot@dn.pt