Pedro Costa nos píncaros de Cannes
O Festival de Cannes teve ontem banquete português de grande cinema. De Pedro Costa a Filipa Reis e João Guerra Miller, passando pelo caso brasileiro de João Salaviza. E na Quinzena dos Cineastas, a musa Oliveira, Leonor Silveira, também teve uma ovação de respeito.
Um dia português em Cannes, na seleção oficial, na Quinzaine des Cineastes. Filmes de todos os tamanhos e feitios. E seja com bons ou maus feitios, é quase impossível não concordar que se trata de uma fornada feliz de criações. A tal diversidade de que se fala ou o cinema português a representar a cultura nacional fora de portas como mais nenhuma outra forma de arte o consegue - não foi realmente por acaso que o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva veio cá assistir a esse feito.
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Na seleção oficial, fora de concurso, passou As Filhas do Fogo, oito minutos de Pedro Costa em jeito de improviso. A palavra "improviso" é do diretor artístico do festival, o senhor Thiérry Frémaux que mal viu no inverno esta curta de Costa disse logo que sim - o problema era encontrar uma maneira digna de a mostrar. E a improvisação foi anteontem passar ao lado do documentário Man in Black, de Wang Bing e, ontem, juntamente com um objeto chamado Drôles de Guerres, a partir de material de Godard. As tais afinidades eletivas, precisamente com cineastas que Costa sabe que trabalham com música. E se As Filhas do Fogo é assumidamente uma espécie de trailer para um filme musical que há de vir (na sessão, Costa não garantiu se o título muda), as imagens dos "blocos de nota" de Godard são para um filme que nunca irá existir.

As Filhas do Fogo são oito minutos de Pedro Costa em jeito de improviso.
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As Filhas do Fogo assume-se como uma viagem à Ilha do Fogo, em Cabo Verde onde num só tríptico vemos três irmãs separadas a cantar uma melodia de sofrimento. O maestro e cravista Marcos Magalhães dirige os Músicos do Tejo num objeto de beleza inominável. Por muito que seja um sample, este estudo de luz de Costa será sempre das imagens que deixará cicatrizes visuais na memória de quem o vê. Quem esteve na sessão da sala Buñuel percebe que cada vez mais se trata de um cineasta star, a quem os jovens pedem autógrafos e figuras como Paulo Branco ou Alexandre Melo fazem questão de aplaudir.
Salaviza, Miller Guerra, Reis, Maciel e Silveira
Na sala ao lado, o Debussy, João Salaviza regressava ao Un Certain Regard com a sua companheira, Renée Mader Messora, e os índios Krahõ, desta vez com A Flor do Buriti, sequela espiritual do anterior Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. A Kraholândia aqui descrita como território de resistência e de combate de um povo que ao longo dos tempos sempre foi forçado a reagir - não é por acaso que, a dada altura, esta ficção integra o real e segue os Krahô para um protesto em Brasília contra o governo de Bolsonaro. Em Portugal, os cinemas recebem esta aventura espiritual apenas em março.

João Salaviza regressou ao Un Certain Regard com a sua companheira, Renée Mader Messora, e os índios Krahõ, desta vez com A Flor do Buriti.
© CHRISTOPHE SIMON / AFP
A grande pérola portuguesa foi também ontem vista, o belo Légua, de Filipa Reis e Miller Guerra, relato de uma mulher perto dos cinquenta a contas com um momento definidor da vida, enquanto a doença da tia avança e a filha se descobre como mulher. Um filme que é também uma conquista de uma atriz, Carla Maciel, das melhores da sua geração e que agora jamais pode ficar sem filmes à sua altura.
Légua deverá estrear já em junho e é obra para nos deixar perenes naquele silêncio minhoto, onde tudo é de uma dignidade tão fascinante como misteriosa.
Também na Quinzena, continuam a surgir os ecos da apresentação da cópia restaurada de Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, que passou numa sessão para festejar o seu 30.º aniversário. Ecos que garantem que a receção a Leonor Silveira foi apoteótica. A atriz que tem o rosto nos cartazes da Quinzaine continua uma Bovary sem idade. Quem agora a descobrir em Viver Mal, de João Canijo, percebe que Oliveira estava à frente de todos, sempre...
dnot@dn.pt
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