Um presidente dos Estados Unidos recém-reeleito escolhe o seu novo chefe de segurança. Podia começar assim o presente segundo mandato de Donald Trump, ainda mais depois do episódio da falha de proteção na campanha. Mas o presidente de que falamos é jovem (com ares de John F. Kennedy), democrata, gosta de um copito de whisky a acompanhar as conversas na Sala Oval e demonstra ser alguém com consciência de que o mundo está “19 vezes pior do que as pessoas imaginam”, por isso, se calhar, convém não estragá-lo mais... Quando conhecemos esse bem-encarado líder (James Marsden), ele já não se encontra no mundo dos vivos: aquilo é um flashback e foi a personagem do segurança, Xavier, quem deu com ele morto no chão do quarto. O segurança, esse (papel muito bem entregue a Sterling K. Brown), assume afinal o protagonismo de uma série que não é exatamente sobre o que parece ser no início. Enfim: Paradise já tem três episódios disponíveis no Disney+, e os restantes cinco serão lançados numa cadência semanal.Como avançar depois desta revelação? Dan Fogelman, o criador da série, não facilitou a vida a quem está incumbido de lançar umas luzes sobre a natureza do seu drama. Nesses primeiros minutos, a tenda do thriller está claramente montada, mas o homem que antes nos deu o sucesso This is Us não se fica pelas leis do “paraíso” habitacional onde o corpo do então ex-presidente é encontrado. Uma comunidade tranquila, com algo de artificial. Nas palavras de Fogelman à revista Variety: “O nosso objetivo era mostrar uma cidade que parecesse o ideal americano, como se muito dinheiro tivesse sido gasto na tentativa de se criar um lugar onde quereríamos viver, e que ainda tem um pouco de pátina”. Uma espécie de Jupiter, a cidade da Flórida onde vivem celebridades como o golfista Tiger Woods.Sem spoilersO problema de entrar em aspetos mais específicos de Paradise é que se corre o risco de sugerir demasiado o que pode ser a reviravolta ao fim do primeiríssimo episódio. Quem viu This is Us não estranhará, porém, as escolhas da estrutura narrativa do criador, que já nesse extenso drama familiar, de seis temporadas (2016-2022), recorria a várias linhas do tempo para montar um puzzle humano, neste novo caso, servindo também para gerir as pequenas doses de twist depois da grande pirueta de partida.. Diretamente dessa anterior série renomada vem o ator que com ela se apresentou no panorama, Sterling K. Brown, vencedor de um Emmy pela personagem preferida dos fãs, Randall Pearson, e ainda o ano passado nomeado ao Óscar de melhor intérprete secundário por American Fiction. Em Paradise, o show pertence-lhe: pelo facto de a sua personagem (Xavier, o segurança) quebrar o protocolo e atrasar a descoberta do corpo do ex-presidente, tendo sido o último a vê-lo na noite anterior, segundo o registo das câmaras de vigilância, todas as setas estão apontadas à sua cabeça, no que parece ser “só” um caso em início de processo de investigação, com amarguras pessoais a misturarem-se numa atmosfera política de elite. De fato e gravata e expressão estoica, pai viúvo de dois filhos, Brown navega o cenário com uma economia de gestos preciosa.E talvez aqui se possa dizer que Fogelman parte da confiança neste calibre emocional de Brown/Xavier para um conceito de ficção que terá mais a ver com os grandes temas contemporâneos - alterações climáticas, influência dos milionários na esfera política, armas nucleares... - do que com uma escala humana realista. A série acaba por tornar-se um pouco excessiva na proposta, e, a espaços, também um pouco absurda, mas o certo é que sustenta o interesse com uma solidez mais do que suficiente para chegar ao sétimo episódio e fazer-nos sentir que era daquele tipo de ação que estávamos a precisar... Há uma nova respiração nessa reta final, que cria expectativas em relação ao que esconde o último episódio (nem a imprensa teve acesso a ele).Com os Estados Unidos a começarem um novo capítulo sob a liderança de Trump, será curioso perceber como é que a ficção nacional vai lidar com o fio nervoso da realidade. Para já, quaisquer semelhanças de Paradise com personagens dos nossos dias é pura coincidência: Dan Fogelman disse à Variety que escreveu a série há muito mais tempo, e que a ideia é desenvolver três temporadas em que se mudará de tom e foco num estilo de abordagem à The Wire (um dos grandes títulos da HBO), essa ambientada em Baltimore e nas suas diferentes dimensões.Mas, por exemplo, haverá nova temporada de The Good Fight, a melhor crónica da era trumpista em tempo real? De uma maneira ou doutra, a ficção americana pode sempre surpreender-nos. .'Noites Claras'. À procura de outra Lisboa.'A Mulher de Tchaikovsky'. Entre real e surreal.'A Semente do Figo Sagrado'. Tragédia de uma família iraniana