Para ver sem culpa
Uma ideia de ciclo assente na ausência de censura. É isso que se joga dentro das cinco linhas, ou dos cinco filmes, que compõem a mostra a decorrer a partir da próxima semana nas duas mais jovens salas alternativas do circuito lisboeta. Uma ideia de cinema tão pouco conforme à moral e aos bons costumes que até arrisca – imagine-se! – ferir as suscetibilidades contemporâneas, de tal modo o politicamente correto tem vindo a estreitar a aceitação de certas imagens... O convite é então viajar até ao pós-25 de Abril de 1974 e tentar recriar o que terá sido descobrir no grande ecrã o terror de Dario Argento ou o erotismo cru de Tinto Brass. Muitos terão bem presente tal sensação, mas à maior parte de nós só agora será dada a oportunidade de fazer esse exercício de espectador de 74.
Iniciativa peregrina da Festa do Cinema Italiano, que arranca esta sexta-feira, o ciclo simplesmente intitulado “Sem Censura” exibe logo no dia 15, no Cine-Teatro Turim (repete a 21, no Cinema Fernando Lopes), Que Viva a Revolução!, de Paolo e Vittorio Taviani, essa engenhosa representação do falhanço revolucionário da Itália do início dos Anos 1970, através da figura de um líder anarquista no século XIX – aristocrata e anti-herói interpretado por Marcello Mastroianni –, em rota de desalento. Na história das salas portuguesas, ficou como o filme da inauguração do Cinema Nimas, em Lisboa, a 10 de outubro de 1975. Mas será também, neste contexto, uma forma de homenagear Paolo, o irmão da dupla Taviani falecido no passado mês de fevereiro, e Mastroianni, o ator cujo centenário se assinala em setembro.
Outra das escolhas mais populares chama-se Feios, Porcos e Maus (1976), de Ettore Scola, por certo uma das obras emblemáticas do “retrato da miséria” no cinema, qual sátira social capaz de envolver a família italiana de um bairro de lata na mais expressiva amoralidade tragicómica, com pitadas de grotesco.
Um cenário muito diferente de Profondo Rosso (1975), que em Portugal recebeu o título programático O Mistério da Casa Assombrada, sendo tudo menos um filme de sustos mecânicos e fantasmas... Obra-prima do giallo, com assinatura do mestre Dario Argento, Profondo Rosso, que agora se pode revisitar, segue a investigação de um pianista inglês (David Hemmings, o ator de Blow-Up), ajudado por uma jornalista italiana, depois de testemunhar o assassinato de uma vidente. Já com todas as marcas de um cinema de pulsão policial, reconhecível pela abundância de sangue e vislumbres das luvas pretas de couro do assassino, eis um fabuloso objeto de culto, realizado imediatamente antes de Suspiria.
Já dentro de uma índole muito mais indecorosa, do ponto de vista sexual, vamos encontrar também neste ciclo Malícia (1973), de Salvatore Samperi, e Salon Kitty, O Bordel dos Nazis (1976), de Tinto Brass, dois títulos para maiores de 18 anos, que acabam eventualmente por configurar a força máxima do termo “sem censura”.
O primeiro é uma comédia que evolui para a depravação: começa no dia do funeral de uma matriarca e termina com o casamento entre o viúvo e a empregada que substituíra a mãe de família nessa casa só de homens, desde o pai aos três filhos. Com modos cândidos e virtudes demasiado expostas, a protagonista, Angela (Laura Antonelli), vai-se tornando o símbolo de uma alvorada de desejo sexual na residência familiar, até que os jogos eróticos ganham teor explícito... É com certeza um dos títulos mais provocadores e surpreendentes desta seleção, a que o trabalho do diretor de fotografia Vittorio Storaro dá um toque especialíssimo.
Mas se Malícia é uma película de bradar aos céus, o que dizer de Salon Kitty, O Bordel dos Nazis? O filme de Tinto Brass, com Helmut Berger e Ingrid Thulin (uma das atrizes de Ingmar Bergman), sobe ainda mais a parada erótica, inspirando-se no romance homónimo de Peter Norden. Estamos perante doses extremas de iconografia, sejam corpos nus ou suásticas, num conto sobre sexo e política que explora o hedonismo no contracampo do poder... Enfim, para quem quiser sentir a estranheza da licença absoluta, é um facto que, até 21 de abril, ela passa pelas salas do Cine-Teatro Turim e Cinema Fernando Lopes. A liberdade está viva e recomenda-se.