Palma de Ouro para uma fúria americana
Um palmarés do mais politicamente correto possível, mas com um Palma tão surpreendente como justa. Quando se pensava que o iraniano Mohammad Rasoulof, de The Seed of the Sacred Fig, ou a indiana Payal Kapadia, de All We Imagine as Light, pudessem vencer o festival, eis que o júri de Greta Gerwig prefere a audácia de um cineasta inspirado: Sean Baker e o seu estupendo Anora, uma história sobre uma prostituta de Nova Iorque que se vê de repente a casar com o filho de um poderoso oligarca russo.
Trata-se sobretudo de um imenso thriller filmado com uma intensidade tórrida e um humor desconcertante. Cinema também de coração nas mãos: intenso, desmedido, alucinante! A consagração de um cineasta que se tornou célebre com um filme rodado com um telemóvel, Tangerine (2015). Aqui fica a certeza que tem uma câmara disponível para o mundo e para nos colocar na pele de uma rapariga presa a um mundo de sexo e objetivação do corpo.
Mesmo sem a Palma, The Seed of the Sacred Fig, de Mohammad Rasoulof, foi o grande aplauso da noite quando venceu o Prémio Especial do Júri. Era realmente o filme que importava premiar, a sua urgência de protesto é um petardo de exposição sobre um regime assassino e cruel. Importava também alertar o mundo para a constante perseguição que os artistas e as mulheres são alvo pelo governo iraniano – o filme foi rodado clandestinamente e só há duas semanas Rasoulof conseguiu escapar do seu país depois de muito tempo vigiado e detido.
The Seed of the Sacred Fig é um relato sobre a verdade. A verdade e a mentira como fonte de uma posição ética, tanto na vida social como na família. Filma-se um escrutínio de um pai e de uma mãe, casal que tenta educar as suas filhas adultas, apanhadas numa altura em que percebem que o seu pai é um investigador importante do governo, alguém responsável por eventualmente passar sentenças de morte numa altura em que há revoltas e manifestações na rua após a morte de uma jovem que não terá respeitado os códigos religiosos da teocracia dominante. Nas duas horas e meia de duração, o filme avança em tensão para um dissolução familiar, daquelas que só uma revolução pode manter a união das três mulheres, quase como um sufocante exercício de suspense em huis clos.
Numa entrevista a publicar em breve no DN, o realizador pedia que a imprensa ajude a condenar o regime e a alertar para o facto de toda a equipa do filme estar sem documentos e impedida de viajar para fora do Irão: “Felizmente há as redes sociais e os telemóveis a filmar todas estas barbaridades”. The Seed of the Sacred Fig está pejado de vídeos verdadeiros a denunciar a repressão das autoridades. O cinema de choque a resistir e a ser uma evidência que nos põe como testemunhas.
Prémios justos mas sem Andrea Arnold
Bem aplaudido também o Grand Prix, neste caso para All We Imagine as Light, de Payal Kapadia, já adquirido para Portugal.
Foram ainda premiados Jacques Audiard, Prémio do Júri para Emilia Perez, Coralie Fargeat, melhor argumento em The Substance, Jesse Plemons, melhor ator em Histórias de Bondade e todo o elenco de Emilia Perez, de Jacques Audiard, prémio de interpretação feminina.
Em Cannes