Os herdeiros de Bordallo

Paula Rego, Joana Vasconcelos, Vhils e Estúdio Campana. Estes são alguns dos nomes que têm perpetuado a visão artística de Raphael Bordallo Pinheiro. As couves, as rãs e as andorinhas saíram definitivamente o mobiliário das nossas avós para o mundo da arte e do design.
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O que criaria Raphael Bordallo Pinheiro nos tempos de hoje? Este é a pergunta que tem levado a empresa Bordallo Pinheiro a colaborar com vários artistas, nacionais e estrangeiros, perpetuando o traço artístico do autor português. Dora é a peça mais recente criada pelos irmãos brasileiros Fernando e Humberto Campana, fundadores do Estúdio Campana de São Paulo. Lançada comercialmente no final de maio e limitada a 137 exemplares, Dora foi inspirada numa notícia de 2019 sobre um urso polar encontrado a revirar lixo na Ucrânia. Os autores quiseram retratar as consequências da crise ambiental e intervieram artisticamente sobre o conjunto escultórico o Lobo e o Grou de Raphael. Numa situação idêntica à da notícia de 2019, Dora "alimenta-se de restos inapropriados, como uma escova de dentes, embalagens e correntes", explica a Bordallo Pinheiro. A peça esteve exposta no museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na exposição Irmãos Campana - 35 Revoluções dedicada ao trabalho da dupla criativa que tem peças nas coleções permanentes no Centro Pompidou, em Paris, no MoMa, de Nova Iorque, e no museu Vitra Design, na Alemanha.

Citaçãocitacao"Fizemos a pergunta: o que faria Raphael Bordallo Pinheiro nos dias de hoje? E rapidamente chegamos à conclusão que iria colaborar com artistas contemporâneos", conta Nuno Barra, Administrador da Bordallo Pinheiro."

Nuno Barra, administrador da empresa - que hoje faz parte da Visabeira e que também detém a Vista Alegre -, é igualmente responsável pelos projetos artísticos e conta como foi o caminho percorrido pelas peças que na infância proliferavam na casa das avós em cima de napperons (e olhadas com algum desdém) e hoje estão expostas em museus, inspiram artistas e têm ávidos colecionadores. "Ao visitarmos feiras noutros países, em França por exemplo, víamos áreas enormes com peças da Bordallo Pinheiro em exposições enquanto que em Portugal quase que as escondíamos", explica o responsável.

A pergunta feita no início deste artigo deu o mote para o que se seguiu. "Fizemos a pergunta: o que faria Raphael Bordallo Pinheiro nos dias de hoje? E rapidamente chegamos à conclusão que iria colaborar com artistas contemporâneos", conta ao DN.

As colaborações começaram na altura do 125.º aniversário, em 2009, com o convite feito a vários artistas, de várias áreas de atuação, do design à arte contemporânea. "Na curadoria dos sete primeiros artistas, fizemos um equilíbrio entre várias disciplinas, arte contemporânea e olhares diferentes". Desde a diretora artística da fábrica da Bordallo, a novos nomes da arte contemporânea, no caso a Catarina Pestana, acrescentaram o designer Henrique Cayatte e também Bela Silva, Elsa Rebelo, Fernando Brízio, Susanne Themlitz e Joana Vasconcelos - a coleção chama-se 7 Bordallianos.

Mas o verdadeiro início teve lugar há mais de 130 anos. Raphael Bordallo Pinheiro, que é considerado o pai da caricatura tanto em Portugal como no Brasil, "era uma figura multidisciplinar do seu tempo", refere Nuno Barra. Nasceu a 21 de março de 1846, em Lisboa, onde morreu em 1905.

Foi pintor, ilustrador, ceramista, jornalista, frequentou Belas Artes, era assíduo do teatro e editou vários jornais humorísticos com sucesso. Em 1884, o criador do Zé Povinho começou a sua produção cerâmica na Fábrica de Faianças nas Caldas da Rainha, em conjunto com o irmão, Feliciano Bordallo Pinheiro. Criou azulejos, painéis, potes, centros de mesa, jarros bustos, fontes lavatórios, animais agigantados, entre outros."A genialidade de Raphael é um dos expoentes máximos da cultura portuguesa e não só na cerâmica. Era um bon vivant, gostava muito de gastronomia. Depois foi para o Brasil, porque as coisas não lhe estavam a correr bem em Portugal e fez lá a mesma coisa durante os cinco anos de permanência", tornando-se um dos autores fundamentais dos primórdios da caricatura por lá.

Raphael, que também era irmão do pintor Columbano Bordallo Pinheiro, era uma figura ímpar, explica Nuno Barra: "Ele conhecia bem os políticos, criava as suas sátiras e depois no dia seguinte ia almoçar com eles".

"Há uns anos criamos uma exposição que andou por várias cidades no Brasil e uma vez no Rio de Janeiro chegou-se perto de mim um senhor com um livro grande, enciclopédico, sobre o cartoon brasileiro, no qual o maior capítulo era dedicado a Raphael Bordallo Pinheiro. O autor do livro, que era um estudioso da matéria, ofereceu-me um exemplar e disse-me: "Sabia que Bordallo Pinheiro foi o pai do cartoon no Brasil?"", diz Nuno Barra.

Pegando na herança artística que Raphael deixou da sua estada no Brasil, a que se juntou uma crescente procura das peças por galerias de arte brasileiras, a Visabeira deu continuidade à experiência da primeira coleção dos 7 Bordallianos e decidiu que o Brasil seria o próximo passo para a internacionalização da marca e do trabalho do português. "Não só a nível de cartoon, na cerâmica Bordallo fez no Brasil um trabalho muito importante. Aliás, a maior peça criada por ele, com 2,60 metros, está em exposição no museu do Rio de Janeiro".

Estudo e pesquisa feita sobre os artistas brasileiros, com o mote dos três pilares que já vinham da exposição com os portugueses - artistas consagrados, novos e de áreas diferentes -, "começamos a contatar os artistas um a um, como o Vik Muniz que vivia em Nova Iorque e tinha uma grande projeção, a quem juntamos nomes das novas gerações e dos mais subversivos e de outras áreas". Nuno Barra conta a abordagem curiosa, até porque muitos não conheciam Bordallo. À medida que iam descobrindo a "onda agigantou-se e começamos a ter pedidos de outros para participar". Um dos convidados, o artista plástico Caetano de Almeida, descendente de portugueses, revelou que receber o convite e investigar a proveniência as imagens que viu remeteu-o para as memórias da casa da avó. "Até então não fazia ideia de que era Bordallo", explica Nuno Barra. Assim, foi criada uma nova coleção, a 20BB- Bordallianos do Brasil, em 2015. 20 artistas brasileiros criaram uma coleção, também numerada e limitada a 250 exemplares, "captando a paixão, criatividade, a consciência social, o humor e a transgressão de ideias de Raphael Bordallo Pinheiro". Do rol de nomes destacam-se os já mencionados Vik Muniz e Caetano de Almeida mas também Efrain Almeida, Maria Lynch, Barrão, Marco Chaves e o escultor Tunga (1952-2016). Os artistas vieram a Portugal passar 10 dias, beber inspiração e conhecer a fábrica da Bordallo. "A certa altura tivemos de dizer para terem calma porque era apenas uma peça por cada um", diz divertido. Do trabalho foi criada uma tournée (Belo Horizonte, Portalegre, Rio de Janeiro, São Paulo) de exposições e um catálogo que ainda hoje se vende em livrarias no Brasil. A exposição depois veio para Lisboa, na Gulbenkian, e ainda esteve em Madrid.

"Depois destas duas experiências decidimos que não devíamos limitar essa experiência colaborativa a artistas conhecidos em Portugal e no Brasil e começamos a olhar para todo o lado", conta Nuno Barra. A reflexão levou-os a alguém com reconhecimento internacional e com "espírito bordalliano": Paula Rego, a primeira convidada da coleção World Wide Bordallianos.

O processo demorou cerca de um ano, mas depois foi relativamente simples, indica, com a artista a colocar em cerâmica uma peça que tinha feito no passado em tecido e que era influenciada por Bordallo: Figo, que esgotou em três semanas. "Depois fomos escolher uma pessoa de uma área diferente, também uma mulher, a designer Nini Andrade Silva, com a peça Banana da Madeira . E logo depois procuramos alguém que falasse às novas gerações e então colaboramos com o Vhils, com Quimera, que também esgotou em pouco tempo". A seguir houve uma colaboração com o brasileiro Luiz Zerbini mas a peça esgotou no Brasil e só foi apresentada em Portugal aos colecionadores. "E em 2019, convidamos os irmãos Campana", recorda (a peça foi lançada agora em maio).

Há ainda a coleção Galeria na qual são feitas colaborações de artistas apenas localmente, em certos países. "Colaboramos com o Carlito Carvalhosa, que morreu há semanas, e que é muito conhecido no Brasil mas não em Portugal. E agora estamos a fazer uma colaboração, também mais local, com uma artista mexicana que vive em Londres", exemplifica.

Nuno Barra conta ainda que esta aproximação aos artistas contemporâneos ajudou em muito a mudar a perceção do valor das peças, mas não foi só. "Uma vez fui à Maison & Object, em Paris, e vi peças da Bordallo com a marca do distribuidor. Existia na altura uma desvalorização total da Bordallo Pinheiro que revertemos. O preço das peças era abaixo do preço de custo, o que era incrível para peças que são pintadas às mão".

Decidiram arriscar e deixar de vender com a marca de outros e começar a comunicar em nome próprio. "Passamos a comunicar sem vergonha e a dizer que o produto era bom. As colaborações com os artistas contemporâneos começaram a trazer, paulatinamente, um outro olhar sobre as peças de Bordallo". Ao mesmo tempo, explica, houve um grande trabalho para acabar com a confusão de que as peças de Bordallo estavam relacionadas com a loiça das Caldas. Hoje, para além de Portugal, e no objetivo "de tornar Bordallo uma marca global", a Suécia é um dos mercado que mais cresce sendo que não existia há cinco anos", diz . "Sempre nos disseram que os nórdicos gostavam de peças brancas, minimalistas com linhas direitas, mas não era bem assim, os suecos também gostam de cor". Atualmente, o principal mercado internacional é o Reino Unido "e em breve vamos estar presente no Harrods", explica o administrador. E também aFrança, com as duas lojas em Paris e colaborações com marcas de luxo gaulesas a anunciar em breve.

Futuras peças e colaborações estão já a ser ultimadas, mas o sigilo é total: "A surpresa faz parte da filosofia da Bordallo: nunca ninguém sabe o que vamos fazer!" Um manguito à Zé Povinho à curiosidade do jornalista, a prova que o humor de Raphael Bordallo Pinheiro continua bem vivo.

filipe.gil@dn.pt

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