Há 107 anos, a companhia de bailado Ballets Russes esteve em Portugal, numa digressão muito atribulada e que, praticamente, foi erradicada da história do grupo fundado por Serguei Diaghilev devido a todos os contratempos que se colocaram na estada em Lisboa e nos espetáculos que deram no Coliseu dos Recreios e no Teatro Nacional de São Carlos em dezembro de 1917. A companhia não podia ter chegado à capital portuguesa em pior altura, a do golpe sidonista e de confrontos militares pelas ruas onde os membros dos Ballets Russes estavam hospedados ou nos palcos onde deveriam atuar.O bailarino e coreógrafo António Laginha decidiu fazer um retrato o mais completo possível dessa passagem da companhia e apresenta quinta-feira no São Carlos a nova edição do seu livro Os Ballets Russes em Portugal, onde refaz a história dessa deslocação. O autor enquadra a trágica passagem pelas salas lisboetas num âmbito mais largo: “Penso que dentro das condições sócio-económicas e, sobretudo, políticas – no contexto de uma guerra que assolava a Europa e já durava havia cerca de três anos e meio – era impossível os Ballets Russes encontrarem em Portugal um terreno propício para se mostrarem com o fulgor artístico habitual, tendo Lisboa funcionado como uma espécie de tábua de salvação quando a situação financeira do grupo já era desesperada.”Para o investigador, a viagem a Portugal foi em muito afetada pela revolução de Sidónio Pais: “A forma como a capital portuguesa recebeu os artistas tornou a sua situação insuportável, assustando-os com tiros nos Restauradores, entre o hotel Avenida Palace onde ficaram e o Coliseu onde atuaram. Foi uma experiência que tinha tudo para dar errado e, ainda que muito do público da época não se tivesse apercebido da real situação com que os artistas se defrontaram, essa foi a memória que todos levaram na bagagem quando deixaram a Estação do Rossio no dia 28 de março de 1918.”A edição deste livro contém uma profusa seleção de ilustrações e recortes da época que testemunham os tempos de auge dos Ballets Russes nas suas apresentações internacionais, com imagens dos seus principais bailarinos: Vaslav e Rómula Nijinski, Massine e Alexandra Danilova, Anna Pavlova e Fokine, entre outras estrelas da companhia, bem como dezenas de reproduções de programas e cartazes, figurinos e fotografias, que permitem comparar o brilho das apresentações da companhia face aos dias portugueses de crise, durante os quais tiveram cenários, roupas e sapatilhas estragados pela sujidade das salas. Segundo António Laginha, a experiência poderia ter sido bem mais feliz: “Tudo leva a crer que se os artistas à chegada tivessem encontrado uma Lisboa solarenga, acolhedora e com boa comida, os ânimos de todos – produtores e consumidores - estariam mais elevados para receber as propostas e inovações 'diaghilevianas' e, apesar de todas as vicissitudes, as coisas teriam corrido bastante melhor.»Não foi o que aconteceu, como se pode depreender do levantamento feito pelo autor, a que acresce o estado cultural da época: “A total ausência de sofisticação e cosmopolitismo dos espectadores lisboetas da altura, não lhes dava as ferramentas necessárias para colher da célebre companhia mais do que uma impressão epidérmica das obras de arte que lhes estavam a ser oferecidas.”Entre as figuras nacionais capazes de perceber o fenómeno Ballets Russes estava Almada Negreiros, que terá sido o único a viver com a devida intensidade a vinda do grupo a Lisboa, percebido a sua importância e sentido a sua influência no trabalho que desenvolveu posteriormente. Para Laginha esse é um dos poucos factos que a passagem de quase onze décadas não apaga: “Recordar Almada é sempre falar do artista polissémico, intuitivo e eternamente 'jovem' que a História das Artes Portuguesas tanto estimam e que parece ter sido fadado para não deixar de estar sempre ligado a um determinado tipo de futuro. Foi Almada que no final de 1917 tudo fez para honrar a visita dos Ballets Russes, para se entusiasmar com a estadia dos Ballets Russes, para aprender com os artistas dos Ballets Russes e para se inspirar nos Ballets Russes. Mas acabou por ser um meteoro que cruzou a dança portuguesa sem, nunca, ter verdadeiramente feito parte dela. Foi uma chama fátua que se apagou sem sequer ter deixado um rasto de cinza para a posteridade. Provavelmente Almada terá sido a pessoa que melhor percebeu a importância e o impacto da companhia de Diaghilev nos que tiveram a sorte de acorrer ao Coliseu ou ao São Carlos, mas não tendo ele qualquer ligação anterior à dança e posteriormente ao verdadeiro e sólido poder, não pôde desenvolver uma arte que necessitava de maestria e ou de fundar uma escola ou companhia de bailado que prolongassem no tempo a magia da dança académico-clássica ou da desapontante dança modernista.”.Se a presença dos Ballets Russes em Portugal em nada influenciou o repertório da companhia, o mesmo não se verificou com a deslocação que se seguiu por Espanha. Segundo o autor, “antes de aportar a Lisboa, a companhia exibira-se em duas cidades espanholas, Madrid e Barcelona, tendo Lisboa surgido como uma proposta irrecusável do diretor do Coliseu. No entanto, após os quatro meses negros lisboetas, o empresário Serguei Diaghilev miraculosamente conseguiu uma digressão por catorze localidades espanholas, antes de um grupo completamente destroçado penosamente rumar a terras de França e, finalmente, a um porto seguro chamado Londres.”O interesse despertado pelas danças e o folclore espanhol na companhia em detrimento de qualquer espanto sobre as portuguesas não surge do nada, como esclarece António Laginha: “Na época, Espanha estava muito viva no imaginário de Diaghilev, desde logo pela ligação que tinha a Picasso e a outros artistas espanhóis, também pelo facto de o rei de Espanha, Afonso XIII, ser mecenas e apoiante da companhia. Além destes elementos, quando o empresário entendeu o interesse do seu principal coreógrafo, Leonid Massine, no flamenco, deu força a projetos que, anos mais tarde, em 1921 e 1922, iriam despertar particular entusiasmo em García Lorca e Manuel de Falla. De Portugal, infelizmente para o país, Diaghilev não teve quem lhe apresentasse a nossa cultura nem a dança portuguesa.”De novo Laginha destaca Almada Negreiros: “Em Lisboa, os Ballets Russes apenas terão encontrado esse entusiasta Almada Negreiros, que terá proposto a Diaghilev o enredo e os figurinos para um bailado sobre os amores de Pedro e Inês. Apesar das nossas danças folclóricas serem bastante variadas, não seria expectável haver exemplos ou uma qualquer mostra na capital, ou encontrar nelas a força das danças russas ou a espessura dramática da 'alma cigana' que o flamenco encerra.”Se os Ballets Russes em nada se inspiraram nas tradições portuguesas, também as companhias nacionais em pouco honraram essa passagem de Diaghilev e dos seus bailarinos no século que seguiu. O autor explica a situação: “Falar em companhias portuguesas no século XX é falar de grupos que ao mesmo tempo que se foram formando foram-se extinguindo. Esse parece ser o triste destino no qual a dança portuguesa tem vindo a perdurar. Desde o grupo pioneiro de Margarida de Abreu até à Companhia Nacional de Bailado – a única instituição terpsícoreana de peso que sobreviveu no século passado em Portugal –, foi-se tentando manter viva, com maior ou menor qualidade, a semente de Diaghilev. Apesar de tal não ser fácil, devido ao custo e à qualidade artística que tal exige, a Fundação Gulbenkian, com os excelentes meios que Madalena Perdigão alocou ao bailado, conseguiu alguns 'milagres', desde logo o extraordinário bailado Petruchka, que Lisboa pôde ver nos anos 1970 em nada menos que três remontagens. Na verdade, num país em que tão pouco se trabalha nesta área, creio que a presença dos Ballets Russes em Portugal foi tão ignorada no século XX, como a do Ballet Gulbenkian está a ser ignorada no século XXI. Aliás, tenho uma investigação por publicar que relata em detalhe a história dessa outra extraordinária companhia que nasceu em 1961, com o nome de Grupo Experimental de Ballet, que foi a maior e mais conhecida companhia portuguesa de dança de todos os tempos, que a Fundação Calouste Gulbenkian inesperadamente extinguiu em 2005.”Por todas as razões já apresentadas, pode dizer-se que são muito poucas as referências na bibliografia editada a nível mundial sobre os Ballets Russes e a estada na capital portuguesa. A que se deve esse “apagão” é a pergunta que se faz a António Laginha. Responde sem hesitação: “A ausência de referências ao nosso país em trabalhos de pesquisa a nível internacional deve-se ao facto de praticamente não haver fontes históricas sobre o tempo que os Ballets Russes passaram em Portugal e os testemunhos escritos da época serem vagos e invariavelmente amargurados. Em muitos países foram os artistas e, depois, os investigadores autóctones que foram dando contribuições para o conhecimento acumulativo do percurso da companhia nos diversos países que visitou. Ao contrário de, por exemplo, de Espanha, estranhamente, esse interesse/necessidade só surgiu em 2018 no nosso país. A bibliografia portuguesa sobre essa passagem também é ínfima e foram precisos exatos cem anos para que fosse impressa uma primeira edição deste livro e a do Essencial de Maria João Castro sobre os Ballets Russes.”Como foi possível ignorar a presença dos Ballets Russes em Portugal durante um século? De novo, sem hesitação, o autor responde: “A historiografia da dança portuguesa é muito pouco densa – para utilizar uma palavra simpática – em relação a países em que as artes teatrais são mais acarinhadas e, por conseguinte, estudadas a fundo. Basta ver que a primeira História da Dança em Portugal, da autoria José Sasportes, saiu em 1970 e que só meio século depois foi publicada uma História do Bailado em Portugal, que me foi encomendada pelo CTT.”De acordo com António Laginha, foram várias as dificuldades para completar a investigação de que Os Ballets Russes em Portugal resulta. Dá alguns exemplos: “Não havendo em Portugal tradição de documentar a dança nem arquivos de instituições públicas ou privadas acessíveis e confiáveis como existem, por exemplo, nos Estados Unidos da América, trabalhar com o passado é quase como 'tirar leite das pedras'. Qualquer obra relativa à História da Dança Portuguesa é sempre morosa porque as fontes são reduzidas, por vezes apenas orais, e estão dispersas, e também muito artesanal porque não existe quase nenhuma literatura e a própria massa crítica é frequentemente pouco confiável.”Será que com este livro a história dos Ballets Russes em Portugal ficou definitivamente contada? O autor refere que o seu livro já vai na terceira edição e tem sempre vindo a acrescentar um ou outro detalhe: “De um modo geral, é insensato afirmar que uma qualquer investigação está completa mas, depois das pesquisas de Maria João Castro e deste meu trabalho, que complementa a nível de levantamento artístico e análise dos dados e de conhecimentos práticos em Portugal e no estrangeiro, atrever-me-ia a acreditar que dificilmente novos dados ainda venham a ser revelados nesta matéria.” .OS BALLETS RUSSES EM PORTUGALAntónio LaginhaSPA/C.M. Olhão134 páginasA obra será apresentada dia 23 no Teatro São Carlos pelas 18.00.Outras novidades literárias.ENTRAR NA MANHÃ SÓ COM A MEMÓRIAA poesia de Castro Mendes já não surpreende porque, como deixa registado no primeiro verso de Vamos escrever um poema, em que pergunta “Vamos falhar de novo?”, está lá a melhor resposta para a afirmação anterior - a da não surpresa: “Vamos estender novas linhas de palavras / na folha branca e luminosa em frente de nós”. É o que tem vindo a fazer num percurso em que tem sempre o olhar de um Outro Ulisses..AS MANHÃS QUE NÃO CONHECESLuís Filipe Castro MendesAssírio & Alvim77 páginas .O ESCRITOR SOBE AO PALCO.As duas peças de teatro que estão reunidas no mais recente volume que integra a obra (um dia) completa de Mário de Carvalho nesta editora têm como título Se perguntarem por mim, não estou e Haja harmonia. A primeira data de 1999 e a segunda de 1997, tendo sido ambas representadas no Centro Cultural Malaposta. De comum têm a dramaturgia do escritor, que dá voz irreverente a quase três dezenas de personagens, e a música de Luís Cília. Em boa hora ganham a forma de livro..SE PERGUNTAREM POR MIM…Mário de CarvalhoPorto Editora319 páginas.REEDIÇÃO DE UMA LENDA.Não é uma novidade este Um Estranho em Goa, pois já tem uma década, mas a reedição do romance vai permitir ao escritor encontrar novos leitores para um personagem que tem o nome de um tenor e que na sua biografia acumula elementos não muito respeitáveis. Desbravar uma lenda é o objetivo, mas nem sempre o que se vem a saber é o esperado – o que acontece nesta busca oriental..UM ESTRANHO EM GOAJosé Eduardo AgualusaQuetzal206 páginas