Os amores perdidos segundo Wong Kar-Wai

Os dois primeiros filmes do realizador de<em> In the Mood for Love</em> chegam hoje às salas, começando pelo Cinema Nimas, em Lisboa. Obras inéditas no circuito comercial português que revelam a alvorada de um estilo inconfundível.
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O que é que fica connosco depois de se ver um filme de Wong Kar-Wai? Talvez a solidão vibrante das personagens, o toque da pele e dos tecidos, os relógios de parede e esta ou aquela música que fixa a recordação de um determinado plano. São motivos a falar-nos de um universo de tonalidades noturnas desenvolvido ao longo da década de 1990, que atingiu o zénite com In the Mood for Love - Disponível para Amar (2000), título da mais sugestiva delicadeza e textura, que a Leopardo Filmes repôs em sala numa espantosa cópia restaurada 4K, depois da última edição do Lisbon & Sintra Film Festival, a par com Chungking Express, Anjos Caídos, Felizes Juntos e 2046, todos objeto da mesma operação de restauro digital. É a esse "lote 4K" que se juntam agora As Tears Go by - Ao Sabor da Ambição (1988) e Days of Being Wild - Dias Selvagens (1990), as duas primeiríssimas obras do cineasta chinês, inéditas comercialmente nas salas portuguesas. E uma coisa é certa: tudo o que veio a definir a sua marca autoral já estava ali.

Wong Kar-Wai (n.1958), o homem por trás dos óculos escuros, hoje um dos nomes mais influentes do cinema de Hong Kong, apresentou-se ao mundo com um drama de gangsters que deriva tanto da escola Scorsese como, nas cenas de ação, vai beber ao génio coreográfico do conterrâneo John Woo. Ao Sabor da Ambição centra-se num pequeno mafioso (Andy Lau) e a sua tentativa permanente de controlar a tendência para o caos do seu parceiro de crime (Jacky Cheung), enquanto cai de amores por uma prima (Maggie Cheung) que o faz ponderar o abandono do submundo das ruas de Mongkok. Foi através deste elemento romântico que Wong Kar-Wai estabeleceu a sua linguagem estética, sobrepondo ao filme de género uma vitalidade formal capaz de despertar a atenção do espectador mais distraído. A violência do mundo da tríade cruza-se aqui com a doçura e impetuosidade dos jovens apaixonados, e estes tomam conta da energia poética das imagens, como se vê pela cena noturna em que Andy Lau e Maggie Cheung correm para dentro de uma cabina e se devoram num beijo demorado ao som da versão cantonesa de Take My Breath Away - com certeza um dos mais belos e emocionantes "beijos de cinema". Daqueles momentos que definitivamente ficam connosco.

O charme de Ao Sabor da Ambição reside nessa habilidade de agarrar a tradição cinematográfica de Hong Kong da altura e inscrever-lhe outro tipo de bravura visual, isto é, combinar o mainstream e o olhar de autor. O que, de resto, se traduziu num sucesso de bilheteira e crítica. Alan Tang, que o tinha produzido, quis logo avançar para outro projeto e encomendou a Wong um film noir ambientado nos anos 1960. A pensar no grande público, deu-lhe um orçamento maior, um elenco com algumas estrelas da indústria cantonesa, e a ideia era fazer uma obra em duas partes. Não sonhava ele que o realizador tinha outros planos e não iria responder à lógica convencional da produção de época...

O filme, Dias Selvagens, seria então outra coisa. Espécie de balada de encontros e desencontros, paixões falhadas e noites chuvosas que destila a alma da Hong Kong dessa dita década de 1960, com as subtilezas de classe que distinguiam os cantoneses dos xangaienses. Aqui, Leslie Cheung interpreta um jovem Don Juan que divide o tempo entre as suas conquistas amorosas e a atenção à mulher que o criou; esta relutante em revelar-lhe a identidade da mãe biológica. Começa por ser, de novo, Maggie Cheung (o rosto feminino mais reconhecível do cinema de Wong Kar-Wai) a "vítima" da sedução imatura dele, entrando depois na equação de languidez romântica outra jovem desembaraçada nas manobras sentimentais e um polícia que, entre conversas efémeras, testemunha a melancolia dos amores feridos.

Tal como em Ao Sabor da Ambição, é a graça do melodrama contemporâneo que catapulta Dias Selvagens para uma atmosfera hipnotizante, desta vez moldada por uma consciência tropical que aparece sob a forma do plano recorrente de um bosque de palmeiras. E esse tom verde - que assinala a primeira de várias colaborações com o diretor de fotografia Christopher Doyle - inunda a memória do filme, também com um gancho emocional na cena em que os primeiros apaixonados partilham um minuto de silêncio só deles, e com a música de Xavier Cugat (das sonoridades latinas que fizeram parte da infância do realizador nos anos 1960) a puxar-nos para a dança solitária.

Muito longe das expectativas de filme de ação que alimentava o modelo de entretenimento em Hong Kong, Days of Being Wild acabou rejeitado pelo público local mas apreciado pela crítica, o que lhe valeu o estatuto de obra de culto, deixando muito claro o "estilo" que viria a acompanhar o nome de Wong Kar-Wai. Quanto à segunda parte programada, nunca chegou a ser feita, por razões óbvias de descontentamento do produtor, embora seja possível ver em In the Mood for Love uma versão sonhada desse filme abandonado...

Eis agora a oportunidade de descobrir em sala o batimento cardíaco de dois títulos que não só ofereceram uma nova música ao panorama cinematográfico de Hong Kong, como abriram a porta a uma obra que tem conquistado gerações de espectadores.

dnot@dn.pt

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