Ópera de Händel repleta de estrelas na Gulbenkian

O Grande Auditório recebe este domigo às 18.00 uma récita em versão de concerto da ópera <em>Serse</em>. No elenco, pontificam Franco Fagioli e Vivica Genaux, duas "estrelas" do canto barroco. Falámos com a mezzo-soprano norte-americana
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Na estreia, em Londres, em 1738, Serse esteve longe de ser um sucesso, mas a sua sorte alterou-se radicalmente no século XX: "Na verdade, nem sei o que faz Serse tão popular entre as óperas de Händel! A música é certamente brilhante, mas também o é em tantas outras obras dele... Mas talvez a presença do elemento cómico numa trama de resto séria a torne mais apelativa para o público de hoje", avança Vivica Genaux. Na Gulbenkian, ela cantará o papel do príncipe Arsamene, irmão de Serse (o rei Xerxes persa): é um dos muitos trouser roles (papéis travestidos) que as óperas desta época impõem atualmente, em geral por terem sido originalmente escritos para castrati.

O que nem é o caso de Arsamene: "O papel foi cantado na estreia por uma contralto, o que até é atípico para a época! De resto, o caráter desta personagem assemelha-se ao dos papéis que mais gosto de cantar: ele é nobre e firme de caráter, e não é nem caprichoso nem obstinado. A maioria das suas árias são belas descrições das emoções que vive: o sentimento de traição, de perda, do amor [que parece] não correspondido." Ilustrativa do amplo espetro emocional da personagem é, em sua opinião, "a ária Si, la voglio, no ato II, em que é evidente o absoluto grau de desespero a que o conduziu o conflito com o irmão e o amor que sente por Romilda." Vocalmente, considera a mezzo, "Arsamene é também atípico entre os papéis handelianos para contralto, pois pede uma tessitura maior, o que por outro lado permite ao intérprete mostrar uma maior gama de colorido vocal."

Na ópera, Arsamene contraria (ver-se-á, com êxito) as pretensões do irmão (cantado por Franco Fagioli) em desposar Romilda (cantada por Inga Kalna), a jovem que ama (e que o ama a ele). Vivica descreve assim os contornos da sua relação: "Eu penso que eles se amam, mas também estão cientes das normas e hierarquias sociais, que respeitam, mas que aqui os inibem. Daí eles não verem uma saída para poderem assumir publicamente o seu amor." Tais dificuldades são servidas pelas "árias talvez emocionalmente mais ricas e cativantes de toda a ópera", mas não são as únicas para a cantora: "Há uma ária do Elviro também muito tocante e depois duas muito famosas do protagonista: a Ombra mai fu, logo no início, e Crude furie, no ato III".

Mas tudo isto acontece numa ópera que classifica como "anómala para o seu tempo", explicando: "Por um lado, o libreto tem evidentes elementos de ópera bufa [cómica] nas personagens de Elviro e, até certo ponto, de Atalanta. Depois, Händel inova ao nível da estrutura das árias, que são mais breves que o habitual na opera seria, além de por vezes não inserir recitativos entre as árias. Tudo isso lhe confere uma dose de surpresa e uma certa leveza, que a afastam das óperas daquela época."

E esse "inesperado" nota-se logo no papel titular: "Sim, é um facto. E eu gosto muito da visão do Franco [Fagioli], porque ele acentua tudo quanto há de imprevisível nas ações e reações de Serse, mas consegue em simultâneo convencer-nos de que esse comportamento reflete a verdadeira natureza daquela pessoa e não uma qualquer pose." O que a leva a extrapolar e dizer que "o essencial num papel é darmos uma verdadeira personalidade à nossa personagem, com todas as dimensões de um ser de carne e osso. Assim, as suas palavras e ações serão coerentes com o seu íntimo e eles serão convincentes como personagens. Daí, reitero, acho que o Franco fez essa preparação maravilhosamente - e isso nota-se!" Em contraste com esse imprevisível e excêntrico Serse está, acha, o seu Arsamene: "Sim, é muito diferente. Ele possui um coração muito verdadeiro e constante e mantém uma postura séria ao longo de toda a ópera."

O que, por outro lado, acentua o contraste na sua contracena com Franco Fagioli - que é uma estreia: "É verdade, é o primeiro projeto que fazemos juntos e é uma felicidade integrar este elenco magnífico. Admiro-o muito, não só pela sua voz e musicalidade, mas também pela sua disciplina e o afinco com que estuda. Ele constantemente incita-se a si próprio, aos colegas e à orquestra para que explorem mais os coloridos, aprofundem a intenção com que cantam/tocam e, acima de tudo, para que preservem sempre um grau de flexibilidade no momento da récita, de modo a que cada "performance" tenha uma identidade distinta."

Famosa em Händel e em Vivaldi (mas não só), Vivica Genaux vem alternando este Serse, sempre que possível, com um programa onde contrapõe árias do italiano Porpora ao "seu" Händel. Para ela, "é como unir o melhor de dois mundos, pois permite-me procurar a expressão, quer através do intelecto, quer através do instinto". O intelecto, explica, "está em Händel, pois a sua música, pelos elementos de que é feita, exige de nós uma enorme precisão. Antes, eu pensava que isso iria limitar o grau do meu envolvimento emocional, mas em vez disso forcei-me a cantar o máximo que podia de Händel e fui aprendendo a apreciar o desafio que ele me coloca, a cada obra, de fazer uma viagem emocional pelo meu íntimo enquanto percorro as suas paisagens musicais." Daí Vivica afirmar que "Händel é o compositor com o qual me sinto menos à vontade entre todos no repertório barroco". Caso bem diferente é o de Porpora: "Ele vem muito naturalmente de encontro ao meu temperamento. Depois, a sua escrita é mais flexível e ele deixa uma maior margem aberta ao intérprete, embora seja regra geral muito exigente ao nível vocal."

Vivica regressa a Portugal um mês após ter cantado no Palácio de Mateus: "Que local esplêndido. Senti-me como se estivesse de repente de volta ao século XVIII! E uma temática muito interessante, a do concerto, em torno dos irmãos Setaro [empresários de ópera italianos ativos em Espanha e Portugal nessa época]. E foi bonita a dedicatória póstuma ao encenador Gustavo Tambascio [encenador argentino-espanhol, 1948-2018], com o qual tive a honra de trabalhar em Madrid, em março de 2016 [numa zarzuela de Sebastián Durón]. Mas poder habitar, ensaiar e atuar naquele palácio foi um verdadeiro privilégio para mim. E que incrível a adega e todos os métodos arcaicos que ainda usam para produzir o vinho. Magnífico!"

Serse, de G. F. Händel

intérpretes: Fagioli, Genaux, Kalna, Aspromonte et al., Il Pomo d"Oro

maestro: Maxim Emelyanychev

Grande Auditório FCG, 18.00

bilhetes: 20€ - 40€

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