O triste encanto do perdedor

Dois manos <em>loosers </em>vão ao funeral do pai que odeiam. Ewan McGregor e Ethan Hawke são dois adultos magoados em <em>Raymond and Ray</em>, comédia dramática de Rodrigo Garcia, pronta a ser servida em <em>streaming</em>.
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Um funeral, dois interesses românticos, um solo de trompete e uma tentativa de suicídio. É este, mais ou menos, o plano do novo filme de Rodrigo García, cineasta que nos deu o horrendo Quatro Dias a Teu Lado mas que antes tinha acertado em cheio com Albert Nobbs. Estamos na presença de uma comédia também mais ou menos dramática com muita escavação num cemitério da América profunda. Em suma, é uma história sobre dois meio-irmãos que se reúnem para estar presentes no funeral do pai.

Raymond (Ewan McGregor) é o irmão atinado, passa sempre as camisas a ferro, gosta de ordem e assume que não é feliz no seu trabalho. Tem também dois divórcios e vive com o trauma de ter sido desprezado pelo pai, alguém que teve um caso com uma das suas ex. Ray (Ethan Hawke) é o irmão artista, um músico de jazz a tentar recuperar de uma recente viuvez e de uma juventude mergulhada na toxicodependência. Ambos sempre tiveram uma relação distante com um pai que nunca o soube ser. E neste funeral vão descobrir ainda mais segredos de família e perceber se ainda têm uma atração fraternal, mesmo apesar das diferenças.

Antes de tudo, Raymond and Ray vive de uma química entre atores: acreditamos de facto no elo familiar entre estes dois atores que construíram uma irmandade forte. De um lado, Ethan Hawke, a fazer um pouco o número dos papéis de uma certa fase da carreira de Jeff Bridges. Parece-nos um ator cada vez mais próximo de uma excelência inexplicável. Do outro, o escocês Ewan McGregor, que diz tudo com um "sorriso de verdade", como alguém comenta, mas que não disfarça uma fragilidade ao nível do caricato. É um dos seus maiores momentos na carreira. Juntos, são portadores de uma intensidade dramática que dá ao filme toda a sua força e simboliza um certo encanto de uma ideia de perdedores do sonho americano. Dois homens que não cumpriram o sonho da felicidade e que foram vítima de uma ausência do lugar do pai.

Rodrigo García, conhecido também por ser filho de Gabriel García Márquez, filma um funeral americano e os seus rituais mas está igualmente a refletir sobre as novas famílias. Sabe ser tocante nos momentos certos e é quase sempre soft nos clímax que poderiam resvalar para o azeite. Aliás, essa ligeireza ou doçura redonda é aquilo que este argumento não sabe tão bem explorar. A doçura não tinha que ganhar à amargura...

Mas se esse é um dos calcanhares de Aquiles de um filme pouco ambicioso, sentem-se também aqui ressonâncias de cuidado no texto. García leva esta narrativa para uma inesperada sinfonia de mágoas. Uma espécie de cicatrizes americanas de quem não teve a vida que sonhou. Ou melhor, de quem não cumpriu as expectativas. E nesse ponto, as personagens dos irmãos são particularmente honestas, mesmo quando esse assumir do fracasso tem o seu quê de tragicocómico. No Festival de Toronto, teve uma receção simpática apenas e pelo o que já se percebeu do marketing da Apple TV + não deve ser cozinhado para ser o novo CODA a nível de estatuto de prémios.

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