Com O Professor Bachmann e a sua Turma redescobrimos o espantoso poder documental do cinema - consagrado com um Urso de Prata/Prémio do Júri no Festival de Berlim de 2021 (que decorreu apenas online), o filme chega amanhã às salas portuguesas. Via e-mail, a realizadora Maria Speth fala-nos de um projeto tão invulgar quanto fascinante, envolvendo 30 dias de filmagens e mais de três anos de montagem..A escola do Prof. Bachmann situa-se numa cidade, Stadtallendorf, com uma identidade social e cultural muito particular - como podemos definir essa identidade? A atual cidade Stadtallendorf, não pode ser descrita nem compreendida sem ter em conta a sua história. Stadtallendorf fica na província de Hesse, no meio da Alemanha. Cerca de 21000 pessoas vivem aqui. Segundo as estatísticas oficiais, 25% da população são estrangeiros e 70% tem um passado de imigração. Mais de 70 nacionalidades convivem nesta cidade. Entre eles quase 5000 muçulmanos. É́ uma pequena cidade com uma grande indústria. Em 1951, foi fundada a fundição de ferro Fritz Winter. E em 1956 a Ferrero instalou, nesta cidade, a maior fábrica do mundo onde, desde então, são produzidos a Nutella e Mon Chéri. Juntas, as instalações, são quase tão grandes quanto o resto da cidade. No início dos anos 60, vieram os primeiros "trabalhadores-convidados" do estrangeiro, da Itália e da Grécia; e a partir de 1963 da Turquia em grande número. No entanto, o historial de imigração desta cidade remonta à época do nacional-socialismo. Até 1938, Allendorf era uma pequena aldeia agrícola. Depois, foi ali instalada pelo regime nazi a maior fábrica de produção de explosivos da Europa. Eram cerca de 17000 empregados, e a maioria destes não eram trabalhadores voluntários: trabalhadores forçados, prisioneiros de guerra e prisioneiros do campo de concentração de Münchmühle. Ainda hoje se encontram os bunkers esverdeados usados para a produção de explosivos..Em termos de trabalho, quais foram as regras estabelecidas para a presença da sua equipa de filmagem na escola? A direção da escola apoiou-nos muito durante as filmagens, tanto em termos logísticos como no planeamento. Não houve, portanto, nenhumas condições ou restrições da parte deles. A única regra, que nós mesmos estabelecemos, era filmarmos estritamente como observadores e o mais discretamente possível, sem encenar o decorrer das aulas, não intervindo ou perturbando. Por isso é que trabalhámos com um grupo relativamente pequeno de quatro pessoas na sala de aula, sem iluminação. Passámos muito tempo de preparação na sala para que as crianças nos conhecessem melhor. Durante as filmagens almoçámos juntos, falámos e cantámos muito. O operador de câmara, Reinhold Vorschneider, deu explicações e o seu assistente, um ótimo baterista, deixou todos os alunos fascinados praticando bateria com eles. A confiança mútua aprofundou-se cada vez mais. Tornámo-nos realmente parte da comunidade da turma, conseguindo mover-nos de forma próxima entre as alunas e os alunos..Qual a duração do material filmado? Como foi (e quanto tempo durou) o trabalho de montagem? A quantidade de material foi assustadora no início: filmámos mais de 200 horas. A montagem é sempre um processo difícil, pois temos de deixar material de lado. Mas estou satisfeita por ter ficado muito compacto na versão de três horas e meia. Que tenhamos tido tanto material disponível deveu-se ao facto de, entre janeiro e junho de 2017, ter havido 30 dias de filmagens. Além disso, estávamos na sala de aula estritamente como observadores e o decorrer das aulas era imprevisível, logo as câmaras filmavam quase sem interrupção. A primeira montagem tinha mais de 20 horas de duração. Durante a seleção de material, interessava-nos quais os temas que surgiam e como se desenvolviam os protagonistas, o que devíamos manter para que dentro de toda a dramaturgia nada se perdesse da multiplicidade dos temas e da energia de cada aula. Passei mais de três anos a montar o filme. Deu muito trabalho escolher o que ficava e o que tinha de ser cortado, principalmente com a preocupação de dar espaço a cada uma das personagens. A dificuldade neste tipo de narrativa documental é que ao cortar material se perdem sempre aspetos importantes dos protagonistas ou da narração. Para mim era importante que o espectador ficasse com uma impressão das personalidades de cada uma destas crianças, que depois de ver o filme ainda se lembrasse do Hasan, da Stefi, do Ayman, da Rabia, do Cengiz, etc..A simples noção de "transmissão de saber" parece insuficiente para definir o ambiente daquela sala de aula - como definiria a relação do Prof. Bachmann com os seus alunos? A atitude de Dieter Bachmann com os seus alunos está carregada de uma grande proximidade emocional: sem preconceitos, sem ressentimentos, amigável, benevolente e acima de tudo muito pessoal. Ele não se esconde no papel de professor, mostra-se com todas as suas forças e fraquezas, como pessoa inteira. Empenha todas as suas competências, para abrir possibilidades e criar um ambiente onde todos sintam que se podem verdadeiramente mostrar. A sala de aula como uma espécie de sala de estar. Mas, acima de tudo, como lugar de confiança, onde tudo o que vai na alma dos alunos e alunas pode ser discutido. Onde a conversa é procurada e o professor desafia, provoca, incentiva, critica e fortalece as crianças, promovendo também a solidariedade e a empatia. E dentro deste ambiente familiar, além da transmissão do conhecimento e da exigência no desempenho, há também espaço temático e emocional que pode, em última análise, ajudar os alunos a desenvolver a sua auto-estima: cada um com as suas qualidades, todos têm um lugar na comunidade da turma..Ao filmar, reencontrou algumas memórias da sua própria história de aluna, com aquela idade? E que memórias? Nasci na Baviera e frequentei uma escola de aldeia, semelhante à do filme Ser e Ter, de Nicolas Philibert. Depois entrei para um internato feminino católico em Ingolstadt, que era talvez um pouco como o século XIX, na perspetiva de hoje em dia. Naquela época, o único aspeto multicultural na minha turma era uma menina etíope, que veio para a Alemanha com as suas irmãs por motivos políticos e era uma das minhas melhores amigas. Que cada qual fosse aceite da mesma forma não era certamente o caso. Ali, pelo contrário, estava-se ameaçado pela possibilidade de exclusão social. E todo o ambiente do internato era mais marcado pela repressão do que pela liberdade de expressão..dnot@dn.pt