O primeiro recital de Christian Gerhaher na Gulbenkian
É um dos máximos cantores alemães da atualidade, com uma carreira recheada de prémios e distinções várias. Esteve em Lisboa na primavera de 2017, com a Orquestra Mahler, e regressa agora, para um recital ao lado do seu pianista de sempre, Gerold Huber.
Sobre o programa, que compreende canções de Schubert, Hugo Wolf, Alban Berg e o ciclo "Pensamentos de Tasso", de Wolfgang Rihm (n. 1952), diz-nos: "Eu e o Gerold tendemos em geral para construir programas centrados num único compositor. Mas havia estas canções de Rihm, que queríamos estrear quanto antes, embora um programa 100% Rihm estivesse fora de questão. Daí acabámos por combinar o Rihm com obras que há muito queríamos apresentar, mas que estabelecem uma relação - mais ou menos direta, ou em contraponto - com o Rihm, seja através do conteúdo, ou através dos autores."
No que a estes respeita, avultam os nomes de Goethe, claro, mas também de Mörike e de Rückert: "Os textos deles três são todos da mais alta qualidade poética - isso é aliás um critério basilar para mim e para o Gerold quando toca a selecionar canções. Mas eu diria que o centro de gravidade está claramente em Goethe."
Uma obra em segunda apresentação absoluta
E no centro desse centro estarão os Pensamentos de Tasso (Tasso-Gedanken), que Gerhaher estreia esta sexta-feira, simbolicamente na goetheana cidade de Weimar: "Primeiro, cabe dizer que o Wolfgang [Rihm] é um grande conhecedor e entusiasta de Goethe. Depois, veio o meu "impulso": o Tasso é a primeira obra literária que faz da condição do poeta e do artista na sociedade o seu próprio tema e sempre me pareceu que isso se prestaria idealmente a uma transposição para um ciclo de "Lieder" que fossem outras tantas reflexões sobre essas reflexões. O Wolfgang acolheu bem esta ideia e escreveu as canções." Estas, de acordo com o intérprete, "de forma alguma resumem ou condensam o drama original, mas vão buscar alguns dos principais temas de reflexão do protagonista [o poeta Torquato Tasso, 1544-95] e apropriam-se artisticamente deles. Ao mesmo tempo, eles são impregnados de uma dimensão teatral-psicológica exógena, que porém, nunca rompe o quadro intimista."
Além de Rihm, o cantor já estreou obras de Jörg Widmann e Heinz Holliger, mas afasta qualquer ideia de compromisso com a criação moderna: "A corresponsabilidade do intérprete reside apenas na sua abertura - que para mim é um princípio-base - à apresentação de novas obras, colocando-as assim à discussão. A posteridade ou não delas já é algo que nos ultrapassa."
Gravar todo o Schumann
Este mês saiu também o volume 3 (na RCA, com o título Frage) da planeada integral da obra de Robert Schumann para canto e piano (a completar até 2020). Gerhaher será por isso o primeiro desde Dietrich Fischer-Dieskau (nos anos 70) a abalançar-se num tal projeto (são cerca de 260 canções!). Ele explica assim o cometimento: "Ao contrário do que sucede noutros compositores, eu, que "schumanniano" me confesso, sinto cada uma das suas canções como um objeto artístico absolutamente único, que se debate a cada apresentação cíclica com sempre novos significados, sentidos e pertinência. No seu poder de conceção, Schumann é um autor proto-moderno e isso, junto com a sua subjetividade extremada, é que me impressiona sobremaneira nele."
Depois de nos anteriores álbuns (Dichterliebe de 2004 e Melancholie de 2007) os ciclos Dichterliebe, op. 48 e Liederkreis, op. 39, respetivamente, terem sido as pièces de résistance, desta vez, em Frage (Pergunta, nome de uma das canções incluídas), é às 12 Kerner-Lieder que cabe essa "função".
Do recital para a ópera
No calendário de Gerhaher para esta temporada, destaca-se a sua estreia no papel do valet Figaro, nas Bodas de Fígaro, de Mozart, o que ocorrerá a 29 de junho, na Royal Opera House de Londres, sob a direção de John Eliot Gardiner. Um personagem que Gerhaher descreve assim: "Para mim, Figaro é a única personagem nesta ópera, cujas ações são ditadas exclusivamente pelo seu coração e pela sua boa natureza, isto é: ele não entra em intrigas, nem age por calculismo. Isso transparece bem das maravilhosas árias que canta, as quais, confesso, me tocam mais que as do Conde seu amo [papel em que o cantor já se notabilizou]. Agora, não sei se o facto de já ter cantado o Conde vai "interferir" na minha abordagem, mas interpretar o Figaro foi sempre, reconheço, um desejo ardente meu."
Do verão passado ficou também a sua estreia no papel de Amfortas, no Parsifal, adicionando assim um novo papel wagneriano ao de Wolfram (do Tannhäuser) em que tanto se celebrizou: "Há uma diferença fundamental entre esses papéis, no sentido em que Amfortas é um papel mais breve e, por outro lado, mais vigoroso e "duro", apresentando-nos o retrato de um homem dilacerado e em parte até muito frágil. Para dar corpo a esta caracterização tão volátil contribuíram as anotações performativas do próprio Wagner e os impulsos do maestro Kiril Petrenko. Guardo-a como uma experiência marcante."
No repertório de concerto (logo, sem cena), Christian tem experimentado versões encenadas das Paixões de Bach (que vamos ter na próxima Páscoa na Gulbenkian), opção que vê como justificada, na condição de "se fazer apelo não tanto à mera representação géstica enquanto fenómeno estético, mas antes ao surgimento "natural" de gestos que brotam de uma atitude interpretativa. Logo, não se trata de uma qualquer coreografia, mas antes da decorrência natural de um profundo e intenso trabalho de exegese dramatúrgica e apropriação interpretativa. Posso-lhe dizer que a "ritualização" das Paixões de Bach realizada por Peter Sellars [encenador] em que participei se contam entre as experiências artísticas mais avassaladoras que já vivi."
O fiel pianista
Pedimos-lhe finalmente que nos falasse um pouco de Gerold Huber, no que é um caso raro de fidelidade a um só pianista-acompanhador: "Já conheço o Gerold há mais de 30 anos [são ambos de 1969 e da área de Munique] e considero-o muito simplesmente como o mais extraordinário - no duplo sentido de "muito bom" e de "fora do comum" da palavra - pianista-acompanhador da atualidade. Por isso me congratulo pelo facto de, no entretanto, numerosos alunos terem passado já pelas suas mãos! Longe de se dever tal meramente às suas capacidade técnicas, que de si são espantosas, o Gerold prima ainda por incessantemente procurar cinzelar, apurar e reinventar o som "próprio" para cada canção, nunca se contentando com rotinas ou facilitismos. E isso é algo que eu acho fenomenal."
Recital de Lied
Christian Gerhaher (barítono), Gerold Huber (piano)
obras de Schubert, Wolf, Berg e Rihm
Grande Auditório Gulbenkian, dia 26, 20.00
bilhetes dos 20€ aos 40