"O papel da literatura agora cabe às séries de TV"

Carlos Ruiz Zafón morreu esta sexta-feira em Los Angeles aos 55 anos. O DN republica uma entrevista concedida pelo autor espanhol no final de 2016.

Desde que publicou há 15 anos o sucesso literário "A Sombra do Vento" que o escritor Carlos Ruiz Zafón anda numa roda viva. Está em Lisboa para apresentar o último volume da tetralogia Cemitério dos livros esquecidos, o romance intitulado O Labirinto dos espíritos, depois de o ter lançado em Barcelona há menos de um mês. Seguiu-se uma digressão por Madrid, México, Itália e agora Portugal. Daqui segue viagem para os outros países onde já existe tradução.

Zafón levanta-se cedo e ainda não são 9 horas e já se passeia junto à estátua de Camões. Na lapela traz um dragão, um dos mais de 700 que fazem parte da sua coleção, do qual diz ter sido comprado em Nova Iorque, muito barato. À sala onde decorre a conversa chega uma Coca-Cola Zero. Diz que é para ingerir alguma cafeína logo cedo, um hábito que pode ter a ver com passar metade do ano na Califórnia, onde escreveu grande parte deste quarteto ambientado na sua outra cidade, Barcelona. Aliás, a capital catalã está sempre muito presente na conversa pois está na origem desta saga. Em 1998, recorda, tinha na cabeça uma imagem constante de uma grande biblioteca, com um enorme labirinto de livros, como se fosse uma catedral revestida a romances. Zafón perguntava-se porque pensava nesse lugar dias e dias seguidos e via repetir-se a imagem mentalmente, até se dar conta de que era uma metáfora de algo: "Da importância das ideias e da linguagem da literatura, da memória e da identidade." Algo que lhe surgia em contraponto ao que via acontecer na Califórnia, onde tudo "é sempre novo e reconstruído" e parece que "todas as madrugadas há uma brigada que limpa a memória e cria uma cidade nova." Foi por essa razão que decidiu voltar a casa literariamente e usar as recordações da sua cidade como personagem.

Este livro não tem o slogan usado para promover os anteriores: "Vai-se emocionar como da primeira vez." Será essa a sensação?

Creio que sim porque este é o romance que fecha o ciclo e a peça com que termina a construção do edifício. Os quatro formam uma grande catedral de histórias e de personagens, culminando com a devolução ao leitor da emoção do princípio e com o grande final para que os livros anteriores apontavam. Na minha opinião, reforça a mensagem do prazer da leitura.

Consegue criar o final desejado?

Sim, este era o final que queria desde sempre, mesmo que tivesse um grande problema para encaixar todas as peças devido à complexidade dos três livros anteriores.

Quando começou a escrever A Sombra do Vento já planeava uma tetralogia?

A ideia dos quatro livros vinha desde 1998. No princípio achei que conseguia pôr tudo num livro, mas dei-me logo conta de que seria um livro monstruoso em número de páginas e que tão pouco funcionaria porque a dimensão era impeditiva de obter o labirinto de histórias que queria montar e de as explorar em diferentes direções. Dei-me conta que só faria bem se o partisse em quatro partes e cada uma tivesse a sua personalidade e tom.

Como fez?

Decidi começar pelo primeiro livro, mesmo que não soubesse se poderia escrever os quatro pois desconhecia até que ponto os leitores estariam interessados naquilo tudo que eu queria escrever.

O sucesso permitiu o seu desejo...

Mais do que isso, reforça a ideia de que este projeto valia a pena e que podia criar um mundo de quatro livros em que a história ia crescendo. Até porque também me perguntava se valeria a pena gastar 15 anos da minha vida para escrever quatro livros que ninguém iria ler. Disse para mim: comecemos pelo primeiro. Se continuar interessado, escrevo os restantes. Como não tinha obrigação contratual, a decisão de fazer este grande labirinto de livros só me dizia respeito.

Foi difícil escrever no século XXI a história do início do século XX?

O mais complicado era fazer parte de um mundo que não vivi, é o dos meus pais e avós. Mas isso também fez parte do desafio de poder recriar um mundo a partir do nada.

Até porque Barcelona mudou?

Sim, porque quando era muito jovem Barcelona tinha muito mais em comum com esta que utilizo nos livros. Mas como o que queria era recuperar a cidade mais genuína e não a turística que os visitantes conhecem num fim de semana - o bairro gótico, as lojas e cafés-, não foi um problema.

Nem com a Sagrada Família de Gaudí a ser acabada?

Que é um edifício muito importante para mim devido à relação sentimental que mantenho com a catedral, pois cresci a uma rua de distância. Quando saía de casa era a primeira coisa a ver e a última quando regressava. Em criança, ninguém ligava à Sagrada Família e durante décadas nunca se viram obras porque não havia verba. Recentemente, transformou-se numa grande atração turística e em poucos anos estará terminada, o que me parecia ser impossível enquanto era criança.

Alguma vez comparou a escrita desta tetralogia à construção da Sagrada Família?

Nunca o fiz, mas houve quem comparasse. Como se esta tetralogia fosse um projeto à Gaudí por ter várias portas de entrada. Mas para mim o que a Sagrada Família representa é mais a descoberta infantil que resultava de entrar no recinto e sair por uns buracos nas paredes. Como só havia um vigilante e quase nenhuns turistas, era possível entrar sem autorização, descer à cripta, entrar na oficina das esculturas e subir às torres. Quando vou visitar o meu pai regressa-me essa memória de criança, de ser um lugar fantasma e abandonado em vez da atual Disneylândia.

É como a "vulgarização" desta tetralogia, que é leitura de milhões?

Quando as coisas ficam populares muda tudo, mas a ideia da catedral de palavras sempre me agradou. Que fui escrevendo aos poucos, como se fizesse abóbadas, pilares e torres, até ficar completo. Essa era a impressão que queria dar aos leitores no fim destes quatro livros. Ou seja, posso dizer que estes quatro romances são uma Sagrada Família em miniatura.

Encontrou erros de estrutura nos livros anteriores ao escrever este?

O que aconteceu foi que ao longo dos anos fui alterando várias partes, desviando-as da arquitetura original. Nada que não esperasse, porque a escrita de tantas páginas é um processo orgânico, em que certas personagens criadas oito anos antes seriam vistas por mim de forma diferente depois, ou interessavam-me com outro perfil. Isso provocou alterações complexas na estrutura inicial, complicando a ligação entre o que estava definido e o que foi nascendo. E houve momentos muito complicados quando mudei a orientação de um personagem no segundo ou terceiro livros, levando-me a situações inesperadas e de difícil resolução.

Ficou satisfeito quando escreveu a última página deste Labirinto?

Muito mesmo, porque nos outros livros nunca tive a sensação de ter que reunir todas as pontas para chegar ao fim que desejava. Cada livro fechado não mexia com o seguinte, era quase autónomo, o que não aconteceu desta vez. Foi o fim do percurso.

A maior pressão foi dos leitores ou de si?

É sempre a minha que custa mais, porque os leitores foram sempre muito generosos. Tiveram paciência para esperar pelos livros durante anos, tanto que eu até achava que se tinham esquecido dos personagens e da história! Mas, não foi isso que se passou, pois mantinham-se curiosos quando saía um livro novo. E quando se cruzavam comigo na rua perguntavam sobre o novo livro: "Está a escrever?" E eu dizia: sim, estou. O que confirmava que estavam abertos às minhas propostas em cada livro e que não era preciso alterar o rumo, apenas seguir a intuição.

Por isso a expressão zafónmania?

Isso foi inventado por um livreiro de Barcelona há muitos anos, quando apareceu A Sombra do Vento. Ele recomendava o livro aos leitores e garantia a devolução do dinheiro caso não gostassem. Só que as pessoas voltavam para agradecer a opinião e queriam mais livros assim. Esta expressão era mais uma graça, uma espécie de beatlemania.

Esta tetralogia torna-se uma homenagem ao livro numa época em que perdeu muito do seu prestígio. Concorda?

O que acontece é que nos confrontamos com uma saturação de tudo devido à enorme oferta cultural e de conteúdos. Basta ver que as pessoas da minha geração tinham nos anos 70 uma veneração pelo cinema que desapareceu.

Substituída pelas séries de TV?

Sim, porque os canais de cabo norte-americanos queria crescer e para isso necessitou de conteúdos de grande qualidade. O que fizeram foi entregar o poder do processo criativo aos argumentistas, algo que nunca se vira na televisão ou no cinema. Disseram: "Pode fazer o que quiser desde que as pessoas vejam. Se não tiver sucesso, acaba." O combate pela audiência criou uma era dourada para as séries que, como são de altíssima qualidade, estão a ganhar terreno à ficção popular nos nossos dias. O que antes era o papel da literatura, agora cabe às séries de televisão. É que nunca houve tanta gente a habitar o planeta como agora, seis vezes mais pessoas do que no fim de II Guerra Mundial, e a quantidade de produção de tudo é brutal, acompanhado de uma profissionalização muito grande. Ou seja, a atenção dos leitores é cada vez menor e os livros só ocupam um lugar importante entre os que apreciam a palavra escrita e a beleza da textura literária. Há muitos que abandonaram o livro e outros que nem o descobrem, esse é o desafio de quem escreve. É preciso recuperar leitores como aconteceu no mundo da televisão: com talento.

Com o fim da tetralogia voltará a ser argumentista?

Hummmm... Fui argumentista durante 12 anos e a experiência não foi boa - também era um momento diferente. Tenho várias propostas mas não é o meu plano para já.

E qual é o plano imediato?

Estou a pensar em vários projetos, mas ainda não decidi o que vou fazer. Não descarto a TV, mas a literatura é um luxo para o escritor porque destaca a autoria e o que se cria é nosso. No cinema e na TV a autoria não existe e eu já me acostumei.

Quando começa A Sombra do Vento achou que seria um livro tão especial que lhe permitiria chegar a O Labirinto dos Espíritos?

Acreditei porque era isso que o romance representava para mim, mas também tento nunca pensar no modo como o livro vai ser recebido pelos leitores. Só quando acabo, pois não faz bem ao livro mudar a meio. É preciso acreditar em nós.

Dos quatro livros qual prefere?

Sem dúvida este último, porque é a peça que segura a estrutura total e que resume tudo aquilo que eu queria contar. É a recompensa de tudo o que escrevi até agora. Também porque tem o meu personagem favorito, Alicia.

Prefere Alicia, Fermin ou Garax?

São as três personagens de que mais gosto, porque são a parte de mim de que não me posso separar.

Há quem lhe chame um autor "clássico contemporâneo". Gosta?

O melhor é não pensar muito nestas coisas. As pessoas podem dizê-lo, mas o melhor é ficar em silêncio.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG