O nosso amigo gorila
Num pequeno circo dentro de um pequeno e moribundo shopping center à beira da estrada, um gorila chamado Ivan serve de atração principal de um espetáculo que perde público de dia para dia. A única coisa que ele faz, ao entrar no final do show, é bater no peito e rugir para assustar as criancinhas. De regresso à jaula, deparamos com um primata tranquilo que passa o resto do tempo quieto, ora a servir de cama para um cão rafeiro que entra sempre à socapa ora a conversar com este e com a elefanta matriarca do circo. Assim, no início de O Único e Incomparável Ivan (Disney+), a vida do protagonista parece não lhe causar grandes transtornos ou ansiedade. Mas a chegada de uma cria de elefante refresca o desejo de liberdade que estava esquecida num quotidiano domado pelo dono do circo.
A história de Ivan é verídica e, neste caso, adaptada de um livro infantil de Katherine Applegate. No minuto em que ele se apresenta, com a voz de Sam Rockwell, somos logo apanhados pela boa onda da sua presença; o que não esperávamos é que o filme de Thea Sharrock (realizadora do dramalhão Viver depois de Ti) se ficasse quase só por esta primeira impressão... Através de breves flashbacks vamos saber como foi um gorila parar a um shopping com um circo improvisado, mas não há grande substância no retrato em que nem sequer se percebe muito bem a dimensão do afeto e a questão moral entre o primata e o homem que o criou. Há apenas um derradeiro gesto de carinho que aponta para algo profundo.
Sem um pingo de complexidade, Bryan Cranston interpreta esse empresário aflito, que tenta manter o negócio a todo o custo, mesmo quando as pessoas já não estão muito interessadas na aparição caricatural de um gorila. A nova aposta é então a cria de elefante fofinha (com a voz da pequena estrela de The Florida Project, Brooklynn Prince) que vai devolver o "apelo da selva" que estava a faltar a todos os animais fechados nas jaulas. O que introduz a mensagem do filme: os animais também são dotados de psicologia e é desumano privá-los da natureza, o único lugar onde podem ser livres. No caso de Ivan, o gorila que ficou conhecido pela arte de pintar, a transição foi feita do centro comercial para o Zoo de Atlanta, onde se tornou, de novo, a maior atração...
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Estimável, simpático, reconfortante q.b., O Único e Incomparável Ivan tem o seu verdadeiro mérito no elenco de vozes e no apurado trabalho digital que torna o mundo dos animais falantes menos estranho ao nosso olhar. De facto, de Angelina Jolie, que dá voz à velha elefanta, a Danny DeVito, que anima o tagarela cão rafeiro, passando por Helen Mirren como uma elegante cadela de raça poodle, a magia disto tudo está na expressão vocal dos atores e no prodígio dos efeitos especiais - a nomeação para o Óscar nessa categoria é bem merecida.
Já no capítulo "histórias verídicas de animais", há produções mais recomendáveis, como Togo, de Ericson Core (também no Disney+), a aventura de um extraordinário cão de trenó que derrete o coração de um duro Willem Dafoe. Pode não ter os olhos doces do gorila Ivan, mas tem um filme à sua altura.
dnot@dn.pt