O mundo extremamente desagradável de Ruben Östlund
A Palma de Ouro mais maldita dos últimos anos aí está. É o filme que está na moda xingar mesmo com metade da imprensa a enaltecê-lo. Da minha parte, encontro um meio termo para este fecho da trilogia de Ruben Östlund sobre a decadência do ocidente. Se por um lado há um divertimento genuíno no gozo a uma ideia de primeiro mundo e dos seus privilegiados, as bases do mecanismo da farsa soam a desonestidade moral para o espectador mais desatento. Este Triângulo da Tristeza tem diversas e possíveis camadas de leitura - entusiasma pela sátira viril e selvagem mas perde o impacto quando a sua montagem não evita o supérfluo e deixa o último terço do filme arrastar-se até à exaustão: seria tão mais eficaz e conciso se subtraísse uns bons trinta minutos às suas duas horas e meia. Na verdade, o humor do sueco está a ficar repetitivo: numa só cena conta-se a mesma piada um monte de vezes, veja-se a sequência dos vómitos no jantar de gala do barco. O Quadrado, o seu filme anterior, também vencedor da Palma de Cannes, era tudo mais organizado e certeiro. De certa maneira, é como se a sua centelha de humor de gozo tivesse sido esticada a um limite que às vezes resvala.
E são três os segmentos deste cruzeiro: primeiro a introdução das personagens, sobretudo um casal de modelos. A mecânica das dinâmicas de uma relação de namorados no mundo da moda a propósito da chegada de uma conta de um restaurante dispendioso. Paralelamente, de forma clínica, goza-se descaradamente com os procedimentos de casting de modelos fotográficos masculinos. Logo a seguir, o mesmo casal de modelos está num cruzeiro de luxo como convidados porque têm muitos likes nas redes sociais. Um cruzeiro onde o capitão é alcoólico e comunista americano ferrenho, enquanto o passageiro mais rico é um capitalista russo burgesso e orgulhoso da sua fonte de riqueza: estrume. Tudo colapsa quando devido a uma tempestade o navio afunda.
Alguns dos sobreviventes ficam retidos numa ilha tropical onde não há telemóveis que os salvem. Há que caçar e pescar para sobreviver e é uma camareira quem se torna a líder do grupo. É tempo para os ricos brutos e ignorantes sofrerem.
Com a sua habitual aproximação glacial à deformidade ética de cada personagem, Östlund quer chegar a muitos temas dos nossos dias. É o banquete dos casos dos "nossos dias". Pega-se na dependência da aparência nas redes sociais, orquestra-se teorias sobre o vazio da classe milionária de agora e discute-se teses do marxismo nesta euforia do liberalismo. Um misantropismo anticapitalista que não é discreto: os vómitos são literais e uma parte substancial do estardalhaço da piada é realmente na nossa cara. Seja como for, não deixa de ser dolorosamente divertido essa ideia de luta de classes, onde os que não têm também são satirizados: a tripulação do navio de luxo é composta por gente mesquinha e de sorriso falso. Até aí quase tudo bem, o pior é quando esse desfile de miséria moral parece ter adendas, quase como se fossem planilhas de um excel. E sente-se, nem que seja pela calada, que Östlund está a fazer sátira com concessões populares e em que as bicadas são excessivamente explicadas e contextualizadas. É o caso de um cineasta que em Força Maior confiava mais na malícia do espectador, ele que quer ser o Michael Haneke do sorriso do zeitgeist.
Nos seus melhores momentos, Triangle of Sadness tem os seus méritos, sobretudo quando o estilo do realizador consegue criar aqueles momentos de provocação meticulosa, cirúrgica até, quer na distensão do tempo da corrosão a que se propõe. Precisamente aí percebe-se que há mais do que um filme aqui: fica-se mesmo com a clara sugestão que Östlund terá juntado duas ideias de sátira num só filme - inicialmente, quando Armie Hammer era o escolhido para ser protagonista, da Suécia dizia-se que esta era uma comédia sobre modelos masculinos. E, sejamos francos, conceptualmente, tudo aqui é mais interessante do que na prática.
Entretanto, com a Palma de Ouro e a distribuição da Neon nos EUA, começa a ser uma forte hipótese a presença desta obra nas principais nomeações da temporada dos prémios na América. Por vezes, filmes que polarizam acabam por ter um efeito de tração nos votantes das diversas associações e academia. Goste-se ou odeie-se, é um filme que desperta grande atenção. Uma certa burguesia intelectualmente estabelecida baba-se perante objetos de humor que até vão ao fundo no purgatório de uma decadência moral. E a lição aqui é que o dinheiro e a beleza só fazem mal.
Para alimentar esta onda em torno do homem das duas Palmas de Ouro seguidas, a Alambique estreia na mesma altura três inéditos da sua obra. O Guitarrista (2004), mais conhecido por The Guitar Mongoloid no circuito dos festivais, brilhante e acérrima deliberação punk; Involuntário (2008) e o seu bem recomendável Play (2011), obra que lhe terá aberto portas a orçamentos mais generosos.
São filmes que apenas estarão em exibição em algumas sessões na Casa de Cinema de Coimbra, na Sala Fernando Lopes, em Lisboa, nos circuito SVOD e na Filmin.
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