“O meu pai foi múltiplo, o meu pai foi o pai do amor, também foi o pai disciplinador”
Foto: REINALDO RODRIGUES

“O meu pai foi múltiplo, o meu pai foi o pai do amor, também foi o pai disciplinador”

Depois de 'Revolução', um romance sobre uma época recente, Hugo Gonçalves regressa com um livro muito pessoal, 'Filho do pai'.
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Tem obra como romancista, inclusive um livro recente, Revolução, sobre uma época recente da nossa História, mas tal como antes Filho da mãe também agora este Filho do pai é muito autobiográfico, muito pessoal, onde expõe a história da sua família. É preciso uma coragem especial para fazer isto?

Acho que não. Essa pergunta é feita com alguma frequência até entre os leitores, tal como a utilização do verbo expor. Para algumas pessoas falar de coisas íntimas pode parecer uma exposição. Vejo isso como uma inevitabilidade. Mesmo na ficção, quando escrevo uma cena de sexo, por exemplo no Revolução, ou de violência, já há uma exposição do autor, há algo que é criado por mim e que, mesmo que o leitor não esteja a pensar, “ah, isto aconteceu-lhe”, há algum nível de exposição. Quando ponho um livro na rua e o livro é lido há uma exposição que não existe noutros ofícios. Desde muito cedo percebi isso. Quando fui viver para Nova Iorque, em 2001, logo a seguir à queda das Torres Gémeas, aos ataques terroristas, li um artigo na New Yorker, de Norman Mailer, que se chamava ‘Carta a um Jovem Romancista’, que era aquilo que eu queria ser, e até foi lá que escrevi o meu primeiro romance, e havia uma passagem que me ficou. Que na altura teve ressonância. Mas acho que só anos mais tarde é que a percebi, e que dizia, se queres ir à raiz do problema, se queres ser romancista a sério, então não te podes importar com aquilo que vai pensar a tua família, os teus amigos, e por aí fora. Isto não é uma licença para ires por aí a magoar pessoas, mas faz parte do ofício haver alguma exposição, e até para não te censurares, para ires à tal raiz. O que me levou a escrever este livro? Vem de um fundo mesquinho? É um ajuste de contas? É um ato de exibicionismo, de pornografia sentimental? Não, não é. E, como tal, sinto-me protegido.

O seu pai morreu, e esse é o pretexto também para o livro. Se ele lesse este livro, pelo que conhece dele , como é que ia reagir?

Acho que ele veria um filho que, independentemente de todos os problemas e desentendimentos que tivemos, reserva também por ele carinho, amor e admiração. Muitas das relações entre pais e filhos, ou entre irmãos, são assim, porque nós somos múltiplos. Há pais que têm relações incríveis com os filhos, mas a maior parte das relações, ou parte substancial, é problemática. Especialmente em algumas alturas da vida dos filhos. Sei que este é um livro pessoal, mas não sou alguém que disse “Ah, tenho esta história de vida e como tal vou escrevê-la porque acho que a minha vida dava um livro.” Não, sou um escritor, e isto para mim é muito importante, que já se debruçou sobre muitos temas, a diáspora dos portugueses, a Revolução, a ascensão do radicalismo político nos anos 40 em Portugal, com o ‘Deus, Pátria, Família’, e que disse “há um potencial literário na relação que tive com o meu pai, enquanto filho, enquanto futuro pai de um rapaz, e como tal eu vou pegar nisto e vou tentar fazer um livro com pertinência e lucidez literária.”

É um livro, apesar de tudo, mais feliz do que o seu outro livro autobiográfico. No outro fala da sua mãe, Rosa, que morreu quando tinha oito anos. Agora está a falar do seu pai, um pai que está a morrer e percebe-se a tensão que isso coloca em si, mas ao mesmo tempo é também o momento em que se aproxima o nascimento do seu primeiro filho. Portanto, o outro livro é mais pesado do que este?

Talvez seja porque é um livro assumidamente sobre luto. Parti para Filho da mãe com a ideia de ir indagar o que é que acontece a uma família, não apenas a mim, mas a uma família, a quem morra a mãe, a mulher, que deixa dois filhos órfãos e um marido viúvo. Como é que a ausência do luto, que não foi feito na nossa família, por várias razões, se propaga como uma espécie de onda de choque ao longo das décadas. Agora, quem vai escrever sobre a morte acaba inevitavelmente a escrever sobre a vida. É uma coisa que aprendi neste livro. E mesmo no Filho da mãe há momentos de humor. Quando falo dos meus tios, dos verões no Algarve. E neste livro quando falo na infância do meu pai, numa aldeia raiana, ou da juventude dele em Cascais, nos anos 60, na tropa, o livro também está injetado com humor e com luz e com mar e com a vida na Costa do Sol. Mesmo falando da morte, acho que nunca é de uma forma tétrica, depressiva, não é um livro a carpir a minhas mágoas.

Também faz uma grande homenagem ao seu pai neste livro. Porque reconhece o seu pai, José, como um lutador, a querer construir um futuro, a emigrar, a depois não corre bem e tem que voltar e ir para a Guerra do Ultramar, a emigrar uma segunda vez e de novo a não correr bem e candidato a arquiteto tem que refazer a vida a trabalhar no restaurante dos sogros, antes de ter o dele. Ou seja, é um filho que faz muitas críticas ao pai, mas tem uma admiração óbvia pelo pai.

Entendo que quem leia o livro veja críticas, mas tentei olhar para esta relação sempre do ponto de vista do escritor. Sei que é difícil, nunca se deixa de ser completamente o filho. Mesmo naquilo em que nós discordávamos, ou guerreávamos. Há coisas que nunca vou perceber e se calhar havia coisas em mim que ele nunca percebeu. Tento lançar luz para a escuridão, perceber de onde é que aquilo vem e como é que ele tomou certas decisões em relação à sua vida, aos filhos. Tento não ser judicativo, alguém que está ali para ditar sentenças sobre o pai. Porque, como digo, o meu pai foi múltiplo, o meu pai foi o pai do amor, também foi o pai disciplinador, e chegando a esta idade, tendo agora dois filhos, sei que ninguém é a preto e branco, a não ser que sejam vilões dos James Bond. As pessoas são tridimensionais, têm, coisas boas, coisas más, momentos de falibilidade, momentos em que se superam. Reconheço em mim traços do meu pai, às vezes falo com os meus filhos e percebo isso. Alguns desses traços tento debelar, e há alguns que tento debelar e não consigo, que são quase como uma espécie de sina. E há aspetos do meu caráter que eu dou graças por os ter herdado dele. Se calhar a forma como olho para a escrita, quase como um operário, nada romantizada, a ideia de que não há nenhum trabalho que seja indigno, que esteja abaixo de mim, a ideia de uma certa perseverança sob pressão, a não-desistência, acho que tudo isso vem dele. Penso muito no meu avô, Francisco como o meu filho mais velho, e o percurso dele, que sai de uma aldeia raiana e acaba em Cascais, era guarda-fiscal, o meu pai já tem uma vida melhor por causa desse arrojo, e eu tenho uma vida muito melhor por causa do arrojo do meu pai. É importante o que herdei do meu pai. Herdei, por exemplo, a possibilidade de querer ser escritor, coisa que para ele ou para o meu avô seria algo completamente alienígena. O que é isso, ser escritor? E a vida que ele me deu possibilitou-me fazer essa escolha, mesmo que tivesse preferido que eu fosse advogado ou economista, não interessa, é graças àquilo que ele me possibilitou que pude fazer esta escolha.

Fala do avô aos seus filhos, Francisco e Miguel?

Falo muito, falo muito.

E eles têm curiosidade por esse avô que não conheceram?

Há uma passagem no Filho do pai em que o meu filho pergunta como é que se chamava o meu pai? Respondo José. E ele pergunta, já morreu? Eu digo, já. Mas é engraçado porque há várias histórias que o meu pai me contava e que conto ao meu filho, como aquela em que brincavam com o vendedor de gelados na Praia do Tamariz. E pede-me, pai, conta a história do avô José, o que é que ele dizia ao vendedor de gelados? No outro dia fomos à Praia do Tamariz e dissemos, olha, aqui era a praia onde o teu avô fazia a brincadeira. Os pais vivem em nós. É muito curioso, porque tenho falado com leitores e há uma coisa que é igual em toda gente. Toda a gente diz, havia frases que o meu pai ou a minha mãe me diziam enquanto eu crescia, que achava, ‘é pá, já estou farto de as ouvir, não posso ouvi-las’, e dou por mim a repeti-las de uma forma inconsciente, saem como uma espécie de banda sonora da minha vida doméstica.

Este é um livro onde obviamente o seu pai é omnipresente, mas em que o seu filho, Francisco, prestes a nascer, também está presente, porque mostra ali a expectativa de ser pai. Quis muito ser pai? Foi pai aos 44 anos.

Bem, está escrito no livro, melhor explicado do que conseguirei articular agora. Tive uma vida muito agitada, quase até aos 40 anos, vivi em muitos lugares, tive uma vida boémia, fiz muitas coisas. Acho que ainda bem que fui pai tarde, porque há uma diferença entre ter filhos e ser pai ou mãe, e muitas pessoas confundem isso. A ideia de ter filhos é muito romântica, a ideia de ter uma família. Mesmo nas coisas que escrevia havia uma ideia idealizada, romântica, do que era uma família. Sendo pai mais tarde, tinha desromantizado a paternidade, sabia que grande parte é trabalho, do dia-a-dia, sem prejuízo das coisas incríveis. Escrevo sobre isso no livro: nos primeiros dias após o nascimento do meu filho perdi o impulso de olhar para tudo e tentar ver o que é que se escondia por debaixo das coisas e que fosse suscetível de ser escrito. A minha relação com ele, esse amor, já era pleno e soberano para não precisar de ser escrito. Claro que existe esse elemento de fascínio na paternidade, mas isso nunca me afastou do lado pragmático da vida de ser pai, o lado duro, do vestir, do despir, das preocupações, das doenças, do cansaço, da pressão que isso faz no casal. Foi uma benesse ter sido pai tarde, porque sabia ao que ia. Nunca fui daqueles que diz ‘ah, depois quando a nossa vida voltar a ser como antes’. Os casais dizem isso, mas eu sabia que a minha vida nunca mais voltava a ser como antes, e ainda bem, porque eu não queria que a minha vida voltasse a ser como antes.

Aliás, a prova disso é ter já um segundo filho, repetiu toda a experiência, não é? Pensa que a sua carreira como jornalista e como escritor, a vida em Nova Iorque, Madrid e Rio de Janeiro, foi mais fácil construí-la enquanto não tinha este tipo de preocupação do dia-a-dia?

Foi. Havia uma liberdade e uma propensão para o risco. Nas três cidades onde vivi, fui sem nada. Mesmo, quando em Madrid fui correspondente do Diário de Notícias, só quando estava lá é que comecei a mandar artigos e consegui essa colaboração. Havia um despojamento, uma soltura, que com filhos não me seria possível, porque obviamente ficamos com o coração nas mãos e eles são a prioridade. No livro digo isso, começo a fazer as contas, quando ele tiver 15, eu tenho tantos, quando ele tiver 20, eu tenho tantos. Acho que todos os pais fazem um pouco essa conta. É uma angústia, mas não teria sido bom eu ter sido pai mais novo. Nem para mim nem para os meus filhos. Os livros que quero escrever ou que tenho escrito nos últimos anos, exigem uma maturidade e uma paz de espírito, estar enraizado num lugar e numa vida, que antes, quando era uma espécie de saltimbanco, não era possível.

Filho do pai

Hugo Gonçalves

Companhia das Letras

235 páginas

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