Exclusivo O meu amigo Yusuf
Nem só de Nuri Bilge Ceylan se faz o cinema turco. Quando Neva na Anatólia, de Ferit Karahan, é uma bela surpresa vinda do interior gelado de um colégio, com muito a dizer sobre a angústia da minoria curda
O manto branco que cobre as montanhas da Anatólia está longe da vista quando o filme começa, dentro de um balneário estreito e pouco iluminado onde dezenas de miúdos, em grupos de três por cubículo, tomam o seu banho semanal. Esta é a entrada abrupta, sem legendas adicionais, no ambiente de um internato cujo ensino se destina a estudantes curdos, com o pessoal docente, turco, orientado para disciplinar os rapazes em função de uma cultura do medo. O primeiro indício dessa prática acontece ainda dentro do balneário, na sequência de uma briga inofensiva que resulta num castigo desproporcional: três miúdos que se lavavam num dos cubículos são obrigados a tomar o resto do banho com água fria, como se fosse possível ignorar as temperaturas negativas (-35°C) lá fora. Um desses meninos, Memo, de estrutura franzina, está o tempo todo debaixo do olhar silencioso de outro, Yusuf, que no caminho de volta para o dormitório tira a sua própria toalha dos ombros e coloca-a sobre as costas do amigo enregelado. Um gesto único que rasga brevemente a aspereza da atmosfera opressiva.
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Quando Neva na Anatólia é a segunda longa-metragem de Ferit Karahan, realizador nascido na Turquia que aqui versa em imagens sobre a experiência pessoal de ter sido aluno num destes colégios internos nos anos 1990 (de lá para cá, ele certificou-se de que não mudou muita coisa). O filme venceu o prémio FIPRESCI na secção Panorama do Festival de Berlim 2021, integrou a competição oficial do LEFFEST, com uma menção especial do júri para melhor interpretação (Samet Yildiz, o pequeno Yusuf), e é um daqueles objetos recatados e valiosos que correm o risco de passar despercebidos no meio da abundância de estreias semanais.