O Menino Jesus que Magalhães levou aos filipinos 

É uma história filipina que tem um português como protagonista. No Museu de São Roque, em Lisboa, uma exposição conta-nos a história da maior e mais antiga celebração religiosa das Filipinas. Até 6 de fevereiro.
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No ano do Senhor de 1521, depois de longa e tormentosa viagem, Fernão de Magalhães chegou ao arquipélago que mais tarde receberia o nome de Filipinas e tratou de converter ao cristianismo os reis da ilha de Cebu. Assim poderia iniciar-se (se quiséssemos recriar a retórica da época da primeira viagem de circum-navegação da História) o relato que está a ser contado no Museu de São Roque em Lisboa, através da exposição "O Menino Jesus de Cebu: Um ícone da Cultura e da História das Filipinas".

Para a embaixadora deste país em Lisboa, Celia Anna Feria, que nos fez a visita guiada, "o objetivo da exposição é contar aos portugueses uma história que é muito importante para o nosso povo e que tem um português - Fernão de Magalhães - como protagonista." Em causa está muito mais do que uma imagem religiosa oferecida por um europeu, com propósito evangelizador, a um povo distante: "O Menino Jesus de Cebu", explica ainda embaixadora, "é um ícone religioso muito importante nas Filipinas porque marca o início da cristianização do nosso país. Mas ainda hoje, em qualquer parte do mundo em que haja filipinos, se celebra com entusiasmo e devoção o Menino de Cebu."

Recuemos então a esse ano de 1521: Fernão de Magalhães, no comando de uma expedição encomendada pelo ainda jovem Carlos V, Rei de Espanha e Imperador do Sacro Império Romano Germânico, chega à ilha de Cebu e estabelece amizade com os soberanos locais, batizando-os com os nomes de Carlos e Joana (em homenagem a quem lhe confiara a missão e à mãe deste, Joana, rainha de Castela, que passou à História com o triste epíteto de Joana, a Louca). Como presentes de batismo, o português ofereceu-lhes três imagens: uma Virgem Maria, um crucifixo e o Menino Jesus de Cebu.

Poucos dias depois, Magalhães morreria na batalha de Mactan e os europeus não mais voltaram àquelas paragens até que em 1565 Filipe II de Espanha encarrega Miguel López de Legazpi de descobrir as ilhas a oeste das Molucas. Quando a expedição desembarca em Cebu, um soldado, Juan de Camus de seu nome, descobrirá dentro de uma caixa de pinho esse Menino Jesus que os padres agostinhos incluídos na expedição imediatamente tomam sob a sua proteção. Em breve seria constituída a Confraria do Santo Niño de Cebu, com o Padre Andrés de Urdaneta como líder. Nos séculos que se seguiram, o culto da figura ofertada por Magalhães não mais deixou de crescer, justificando, ainda no século XVI, a construção de uma monumental Igreja, a que o Papa Paulo VI, já no século XX, concederia a dignidade da basílica.

Quase tão antigas como o templo são as celebrações que anualmente, no terceiro domingo de janeiro, tomam a forma dum festival religioso em honra do também designado "Santo Niño" que a embaixadora considera um "dos mais importantes acontecimentos culturais e religiosos celebrados nas Filipinas e em qualquer parte do mundo onde exista uma comunidade nossa." Como se pode ver na exposição de São Roque, esta é uma manifestação de fé em que a solenidade cede lugar à alegria das danças, dos hinos festivos, da cor dos trajes regionais provenientes de todo o arquipélago. "Creio que estas celebrações tão alegres", diz-nos ainda a diplomata, "resultam de uma mescla feliz entre o cristianismo que nos foi trazido por portugueses e espanhóis e as nossas tradições ancestrais. Os frades agostinhos souberam respeitar o que já existia (como o culto dos ananitos, que também estão aqui representados) e pô-lo ao serviço da evangelização."

A apropriação carinhosa e familiar deste Menino Jesus pelos filipinos está bem patente não só na exuberância destas festividades (onde é comum vestirem-se as crianças muito pequenas à sua semelhança) como no facto de ser frequente vestir imagens que o representam com trajes e uniformes profissionais. "É uma forma de se pedir a sua intercessão e proteção", explica a embaixadora. E mostra alguns exemplos trazidos para a exposição: "Há um Menino Jesus com bata de médico, mas também com uniformes de soldado, polícia e bombeiro." Mulher crente ("talvez o fosse menos em jovem mas a vida encarrega-se de nos mudar", admite), a diplomata compreende bem o sentimento que anima práticas como esta: "É como se fizéssemos do Menino um de nós. Há uma proximidade com a figura venerada que talvez seja difícil de compreender na Europa ou nos Estados Unidos."

Com 85% de católicos, os filipinos foram recentemente considerados pelo Papa Francisco um dos povos que mais difunde a sua religião pelo mundo. Para o compreendermos, importa recordar que a diáspora filipina envolve cerca de 10 milhões de pessoas dispersas pelo mundo, dos Estados Unidos à China, passando pela Europa e ainda pelo Médio Oriente. "Os filipinos tendem a emigrar sozinhos, deixando a família na terra natal", explica a embaixadora. "É por isso que a religião desempenha um papel tão importante. É a força espiritual que nos permite enfrentar os desafios e os problemas, às vezes no maior isolamento."

Os filipinos residentes em Portugal não são exceção a esta regra. Todos os domingos, na Igreja da Madalena, em Lisboa, celebra-se a sua missa e para o próximo dia 16 de janeiro - assim a pandemia o permita - está prevista uma celebração do Menino Jesus de Cebu na Igreja de São Roque, com a presença do Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente.

Celebrações religiosas à parte, a 26 de janeiro, também no Museu de São Roque, será apresentada a conferência "O local da primeira missa nas Filipinas em debate: o contributo da cartografia portuguesa", por Miguel Rodrigues Lourenço, do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa. No mesmo dia, realizar-se-á a palestra, "Pobre, & despido por seu amor: o Menino Jesus e a prática de vestir imagens na Época Moderna", que, partindo de várias leituras, pretende contribuir para um entendimento mais alargado do papel das roupas no culto do Menino Jesus, em Portugal.

Com entrada livre, esta exposição resulta de um projeto da Embaixada das Filipinas em Portugal, da National Historical Commission of the Philippines e da Basílica Menor do Santo Niño de Cebu, em colaboração com o Museu de São Roque. Pode ser visitada até ao dia 6 de fevereiro. Depois disso a réplica do Menino Jesus que ali podemos ver, vestida como o original com as cores de Espanha (país de que as Filipinas foram colónia até 1898), será oferecida à vila transmontana de Sabrosa. A mesma em que, há mais de 500 anos, nasceu Fernão de Magalhães.

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