O mau feitio atrás das câmaras de "Casablanca"

<em>Curtiz</em>, agora disponível na Netflix, é um retrato breve do realizador Michael Curtiz durante as atribuladas filmagens de <em>Casablanca</em>, um dos maiores clássicos do cinema americano.
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Nem Ingrid Bergman nem Humphrey Bogart. Nem "I think this is the beginning of a beautiful friendship" nem "We'll always have Paris". As expressões mais conhecidas e citadas de Casablanca (1942), tal como o seu memorável par romântico, não entram na revisitação que o novo Curtiz (Netflix) faz da rodagem do clássico de Hollywood. Mas isso não será um grande problema; o foco aqui é outro. Ao invés de reproduzir a mitologia desse filme que contém uma impetuosa sequência cantada de a Marselhesa, esta primeira longa-metragem de Tamas Yvan Topolanszky quer retratar uma "tempestade" chamada Michael Curtiz, o subestimado realizador húngaro que, justamente com Casablanca, venceu o seu único Óscar...

Num preto e branco estilizado, e com umas notas de jazz que rasgam em permanência a atmosfera, Curtiz é um exercício interessante pela curiosidade cinéfila que o move. De câmara apontada aos bastidores das complexas filmagens de Casablanca, e assumindo uma certa liberdade ficcional, o filme segue as numerosas discussões à volta do patriotismo e da propaganda que então ocupavam os executivos de Hollywood - o ataque a Pearl Harbor acontecera há pouco - o mau clima que raiava em cada take, as piruetas que o argumento sofreu, e o modo como esse realizador intratável tentou gerir as suas questões familiares ao mesmo tempo que forjava uma imprevisível obra-prima.

É de resto pelo ângulo do seu mau feitio, ou mau "génio", que se procura sondar o perfil deste homem que nunca alcançou o estatuto de cineasta maior. Ele chegava ao projeto de Casablanca com o nome associado à descoberta de Errol Flynn - dirigiu-o, por exemplo, em As Aventuras de Robin dos Bosques (1938) e O Gavião dos Mares (1940) - mas estava longe de representar a grande esperança dos estúdios em tempos politicamente difíceis. O resultado, já se sabe, foi essa magia que perdurou no tempo e se cristalizou como o mais perfeito símbolo do romantismo cinematográfico. Não será um bom pretexto para revisitar Casablanca?...

Mulherengo, egocêntrico, irascível, Curtiz não é perdoado em nada nesta fotografia humana do artista. E até o humor à volta do seu sotaque húngaro tem um momento de protagonismo: na rodagem, o realizador terá pedido ao aderecista um "poodle" para uma cena, sendo-lhe apresentados, depois de uma pesquisa esforçada e para espanto do próprio, vários exemplares da raça Poodle... Entenda-se: Curtiz queria dizer "puddle of water" (poça de água).

Curtiz, o filme, ensaia assim o equilíbrio entre o tímido tom de homenagem e o olhar frio perante um caráter pouco recomendável. Jovem realizador, Tamas Yvan Topolanszky não deixa nunca estalar o verniz com que reveste todo o jogo de ilusão dos trabalhos nos estúdios (sente-se a textura dos "sonhos" hollywoodescos) e prefere não sair da zona de conforto de situações e diálogos mais ou menos clichés e trapalhões. No entanto, a sua opção por deixar, literalmente, na sombra as figuras de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, que apenas surgem como vultos sem rosto, reflete-se num muito apreciável sentido de pudor. Chega-nos perfeitamente a visão dos pés de Bogart com os sapatos de plataforma que usou para ficar da mesma altura que Bergman...

** Com interesse

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