O lado obscuro das relações entre o papa Pio XII e os nazis
A atitude do papa Pio XII em relação ao Reich hitleriano e as razões do seu silêncio perante o extermínio sistemático dos judeus da Europa são objeto de perguntas angustiosas e de polémicas apaixonadas. Em face de tal problema, o historiador dificilmente pode pretender alcançar uma objetividade perfeita. Todavia, apesar da confusão criada nos espíritos pelas mais diversas e, por vezes, mais estranhas acusações e refutações, resta uma possibilidade de investigação honesta: ater-se, na medida do possível, aos documentos. Foi essa a regra seguida no estudo que empreendemos.
Uma grande parte das peças que citaremos é inédita; outras são apenas conhecidas por um número muito limitado de especialistas; algumas foram mencionadas em estudos publicados há pouco, mas raramente na sua versão integral. Ora foi esse o segundo princípio metodológico que nos impusemos, apenas a citação do documento in-extenso permite que o leitor avalie o alcance e os matizes verdadeiros. Evitámos, portanto, na maioria dos casos, fazer cortes nos documentos citados, mesmo quando o estilo é prolixo ou certas passagens parecem fastidiosas. Apenas foram evitadas as passagens que não apresentam qualquer relação com o tema, as referências administrativas, as fórmulas de cortesia e certas repetições.
Reinserimos os documentos citados no seu contexto histórico, acompanhando-os de breves observações destinadas a lembrar os
acontecimentos do momento e, por vezes, acrescentámos comentários, quer para avaliar a veracidade provável do documento, quer para prestar esclarecimentos sobre os factos que neles são mencionados. Por vezes, tomamos uma posição. Nesse caso, o leitor pode rejeitar as nossas palavras. O texto do documento mantém-se.
Para este estudo, recorremos às recolhas publicadas dos documentos diplomáticos britânicos e americanos, a alguns textos publicados pelo Vaticano, a certos documentos inéditos do Congresso Judaico Mundial e dos Arquivos Sionistas em Jerusalém, a um documento inédito proveniente da Chancelaria de Hitler, mas sobretudo aos documentos, na sua maioria inéditos, do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Terceiro Reich.
No final da Segunda Guerra Mundial, os Aliados apreenderam os arquivos da maioria dos serviços civis e militares do Reich que não haviam sido destruídos pelos próprios Alemães ou durante os bombardeamentos e combates. Os arquivos da Wilhelmstrasse foram parar, em grande parte, às mãos das forças anglo-americanas. Se os dossiês do gabinete do ministro Ribbentrop haviam sido destruídos quase na totalidade, os do gabinete do secretário de Estado bem como os de certos departamentos importantes do Ministério estavam praticamente intactos, com exceção dos dossiês sobre os últimos meses da guerra.
Esses documentos foram levados para Washington e Londres, filmados pelos Ingleses e os Americanos e, após alguns anos, restituídos à República Federal Alemã. Atualmente, estão à disposição dos investigadores, no Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão. Alguns desses documentos foram - e continuam a ser - publicados por uma comissão de especialistas. Até à data, essas publicações que, de qualquer modo, podem apenas incluir uma parte ínfima do material existente, dizem apenas respeito aos acontecimentos anteriores ao ataque alemão contra a Rússia, em junho de 1941.
Utilizámos a coleção dos documentos alemães publicados e sobretudo, como já referimos, os dossiês ainda inéditos depositados no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Bona. Entre estes últimos, os arquivos do gabinete do secretário de Estado que trata dos assuntos do Vaticano (Staatssekretär: Vatikan) são, de longe, os mais importantes.
Os arquivos do secretário de Estado relacionados com os assuntos italianos (Staatssekretär: Italien), bem como os do departamento encarregado das relações com os serviços de segurança, particularmente no que se refere aos assuntos judaicos em Itália (Inland II A/B: Juden in Italien) e os assuntos do Vaticano (Inland II g: Heiliger Stuhl), forneceram-nos textos importantes. Por último, foram também usados os dossiês do departamento de ligação com as forças armadas (Pol I M).
Os dossiês do gabinete do secretário de Estado que diziam respeito aos assuntos vaticanos foram classificados por ordem cronológica. O último dossiê que encontrámos foi o N.º 5, concluído a 15 de outubro de 1943; segundo as indicações que constam da lombada da pasta, existia um N.º 6, que desapareceu. Alguns documentos do dossiê N.º 6 foram identificados sob a forma de cópias nos ficheiros de outros departamentos do Ministério, mas o essencial do material escapou a todas as nossas pesquisas. Ora, esse material não poderia ter sido destruído pelos bombardeamentos, pois conservam-se os arquivos do gabinete do secretário de Estado relacionados com outros assuntos, relativos ao período posterior a outubro de 1943. Apontemos casualmente que 15 de outubro de 1943 é a data da deportação dos judeus de Roma, à qual se seguiu a deportação dos judeus do Norte da Itália. Será que o dossiê N.º 6 continha a narração das conversas entre Pio XII e o embaixador do Reich no Vaticano sobre tais acontecimentos?
Um estudo da política da Santa Sé em relação ao Terceiro Reich, durante a Segunda Guerra Mundial, baseado essencialmente em documentos diplomáticos alemães, não pode deixar de ser muito parcial; é evidente que seria impossível retirar conclusões definitivas, sem conhecer os documentos do Vaticano.
As relações diplomáticas são, amiúde, influenciadas pelo desejo, por parte dos seus autores, de se protegerem em relação aos governos que servem e, por conseguinte, só comparando os relatórios provenientes das fontes mais diversas se consegue, por vezes, obter uma imagem objetiva. Como acabamos de referir, infelizmente, não é esse o caso do estudo que empreendemos.
No que se refere aos diplomatas do Terceiro Reich, a dificuldade é ainda maior, pois há que ter em conta todos os receios e todas as reticências, bem como os acessos de fanatismo dos servidores de um regime totalitário.
Por último, o estudo das questões vaticanas levanta, por si só, um problema específico. De facto, a Santa Sé oculta a sua oposição aos projetos de um governo sob a aparência de uma amabilidade exterior que pode ser enganosa.
Não obstante todas estas dificuldades, parece-nos que os documentos alemães que iremos apresentar podem contribuir, numa certa medida, para a compreensão dos acontecimentos, por três razões essenciais: a personalidade dos seus autores; a concordância (quanto aos assuntos principais) de um grande número de textos redigidos por diversos diplomatas durante um período de vários anos; a harmonia entre os relatórios alemães e os documentos diplomáticos e outros, provenientes de diversas fontes (sobretudo da inglesa e da americana) quanto a certos acontecimentos concretos.
Ao examinarmos mais de perto esses três critérios, consideremos, em primeiro lugar, a personalidade dos principais autores dos textos de que dispomos, Bergen e Weizsäcker.
Dispomos de poucos testemunhos sobre a personalidade de Diego von Bergen, que foi embaixador da Alemanha junto da Santa Sé, de 1920 a 1943. Citemos, porém, um documento do Ministério dos Negócios Eclesiásticos do Reich, redigido em 1937. Numa nota enviada à Wilhelmstrasse, o secretário de Estado do Ministério dos Assuntos Eclesiásticos, Muhs, escreveu:
«Com grande pesar, sou obrigado a reiterar a opinião que já exprimi frequentemente: o Reich nacional-socialista alemão não está representado, hoje, junto da Santa Sé, com a firmeza necessária, com a vontade e o fervor que são essenciais no decurso de negociações de considerável alcance em matéria de política religiosa.
Os ofícios do embaixador Bergen confirmam a «crítica» de Muhs; o embaixador é um diplomata de carreira, que conhece a fundo os problemas do Vaticano, onde exerce as suas funções desde há muitos anos, e, aparentemente, avesso à mística nazi; nunca se encontrará em qualquer dos seus relatórios um termo proveniente da fraseologia do bom nacional-socialista. É óbvio que os seus ofícios, como os de todos os diplomatas do seu tipo que permaneceram ao serviço de Hitler, serão redigidos em termos prudentes, quando se referem a factos que poderiam inspirar preocupação aos dirigentes do Reich. No conjunto, porém, não há qualquer razão para crer que os relatórios de Bergen tivessem sido embelezados, de modo a falsearem todas as informações transmitidas a Berlim.
Finalmente, não é inútil sublinhar que, devido ao período muito longo que passou no Vaticano, Bergen pôde estabelecer com os vários membros da Cúria e em particular com o secretário de Estado Pacelli, que, em março de 1939, se tornará o papa Pio XII, relações que lhe permitirão obter inúmeras informações confidenciais2. A carta particular que Bergen dirige ao secretário de Estado von Weizsäcker, quando, em 1943, mostra claramente a confiança que a Cúria e sobretudo o Papa lhe demonstravam. Podemos, evidentemente, objetar que Bergen inventou os termos que atribui ao cardeal secretário de Estado, mas isso parece pouco verosímil. Eis, pois, o que escreveu o Embaixador, a 6 de abril de 1943:
«O pedido de agrément (para o meu sucessor) atingiu Maglione3 como se fosse um raio. Houve cenas que é desnecessário descrever aqui. No essencial, a sua reação foi a seguinte: ficou inteiramente surpreendido e muito perturbado. A Cúria estava convencida de que eu ficaria até ao final da guerra. As minhas relações particularmente íntimas com todas as personalidades dirigentes e sobretudo a atitude sob todos os aspetos excecional do Papa em relação a mim permitiam, em todas as ocasiões, trocas de pontos de vista marcadas por uma confiança amistosa e sem reservas a propósito dos problemas mais delicados, o que era impossível, sob essa forma, com outros representantes estrangeiros. Esperara-se também que, tendo em conta essas condições, seria possível, no final da guerra, iniciar uma troca de ideias amistosa e discreta sobre a maneira mais adequada e suscetível de permitir a resolução de problemas muito complexos que se mantinham em suspenso. Tudo isso acabara, portanto. Uma mudança de embaixador num momento como aquele era, no seu entender, impossível!»
Bergen tranquiliza o cardeal Maglione sobre a personalidade do seu sucessor, o secretário de Estado Weizsäcker. Como avaliar o papel deste último, no contexto do nosso estudo?
A personalidade de Weizsäcker é infinitamente mais conhecida do que a de Bergen. Durante o período que nos interessa, será de início secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros (ou seja, a personagem mais importante depois do ministro Ribbentrop) e, depois, embaixador junto da Santa Sé, a partir de julho de 1943. Na qualidade de secretário de Estado, será o principal responsável pelos contactos com o núncio apostólico, mons. Orsenigo.
Escreveu-se muito sobre Weizsäcker e as opiniões sobre a sua personalidade divergem. Contudo, em relação a um ponto, a maioria dos historiadores está de acordo: Weizsäcker era, no seu foro íntimo, hostil ao regime nacional-socialista e esteve associado, por diversas vezes, à resistência alemã contra Hitler. Um dos membros mais ativos da oposição ao regime no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Erich Kordt, descreve-o, nas suas memórias, em termos marcados pela simpatia e também a deferência: «Entre os funcionários», escreve nomeadamente Kordt, «Weizsäcker não era especialmente popular, mas até aos que estavam mais distanciados dele inspirava respeito e confiança».
Quanto à sua atitude perante o regime, Weizsäcker, tal como Bergen, não era homem para inventar boas notícias para agradar a Ribbentrop e Hitler. De facto, no caso de Weizsäcker, foi possível verificar que fazia, várias vezes, o contrário. Preocupado com a política aventureira dos dirigentes do Reich, tentava, de quando em quando, travar o ardor dos seus chefes, comunicando-lhes intencionalmente notícias pessimistas. Alguns ofícios reproduzidos no sexto capítulo do nosso estudo dão a impressão de que Bergen recorria, por vezes, a um método semelhante.
A reticência de Bergen e de Weizsäcker en transmitir informações que pecassem por excesso de otimismo, a sua tendência para travar o ardor dos dirigentes nazis, acentuando, de tempos a tempos, o carácter desfavorável das notícias transmitidas, levam-nos a sugerir que, quando esses dois diplomatas comunicam informações particularmente positivas sobre a atitude do Soberano Pontífice, da Cúria ou do núncio em Berlim a propósito do Reich, é provável que essas informações sejam, em parte, exatas.
Pouco se sabe sobre a personalidade do conselheiro da embaixada alemã junto da Santa Sé, Menshausen; pelo contrário, o comportamento de Woermann, chefe do departamento político da Wilhelmstrasse, foi analisado no âmbito do processo deste ministério, em 1948: também ele pertence ao grupo de funcionários do Ministério dos Negócios Estrageiros que nunca foram adeptos fervorosos do nacional-socialismo. De qualquer modo, as relações de Menshausen e de Woermann revestem-se, em geral, de uma importância secundária no contexto deste estudo.
O segundo critério que nos parece dar um certo valor aos documentos alemães citados no estudo é o da concordância dos textos sobre problemas importantes, o carácter constante das indicações prestadas. Durante cerca de quatro anos, diplomatas do Reich e agentes dos serviços secretos alemães conversaram com o Sumo Pontífice, membros importantes da Cúria e vários dignitários da Igreja, em diferentes países; ora, sobre o conjunto dos problemas essenciais, os relatórios são coincidentes e as contradições, quase inexistentes.
Por último, segundo o nosso terceiro critério de autenticidade, há concordância, a propósito de acontecimentos concretos, entre os textos alemães e os das fontes documentais inglesas ou americanas, por exemplo. No primeiro capítulo do nosso estudo, comprovaremos a notável concordância entre os documentos alemães e britânicos e as memórias de homens de Estado polacos, a propósito da atitude da Santa Sé, durante a crise polaca de março a setembro de 1939. Em resumo, digamos, uma vez mais, que, atendendo a que os documentos alemães não podem ser comparados com os textos correspondentes dos arquivos do Vaticano, a narração dos factos mostra apenas uma face das coisas e, talvez, dos homens. Todavia, tendo em conta os diversos critérios que acabamos de analisar, podemos sustentar que esses documentos e a imagem que dão da situação têm um valor histórico inegável; será nosso dever tratá-los com toda a prudência e reserva necessárias. Os comentários conterão mais interrogações do que afirmações.
Tal como o seu título indica, o estudo tende, essencialmente, a esclarecer a atitude do papa Pio XII em relação ao Terceiro Reich. Impusemo-nos uma limitação estrita no tempo; março de 1939, data da eleição do Papa, assinala o início das nossas pesquisas; setembro de 1944, em que se esgotam as nossas fontes documentais, marca o fim das mesmas. Durante esse breve período de cinco anos, concentramos a nossa maneira de ver o Papa, os seus colaboradores próximos e os seus parceiros, os dirigentes do Terceiro Reich, no âmbito das suas relações com a Santa Sé.
Será que é aceitável uma restrição do tema? Poderemos compreender a atitude de Pio XII, sem ter estudado em pormenor a sua carreira anterior, pelo menos desde 1917, quando foi nomeado núncio em Munique, até à sua elevação ao pontificado supremo?
Podemos apreender os motivos de determinadas decisões suas, sem analisar a situação geral da Igreja e, em particular, a situação da Igreja da Alemanha e as suas relações com o nacional-socialismo?
A nossa escolha justifica-se, parece-nos, por duas razões: por um lado, nos comentários dos textos que apresentaremos, indicaremos tão sucintamente quanto possível, mas tentando expressar o essencial, os dados gerais necessários para a compreensão do documento, referindo-nos, por vezes, ao período anterior a 1939 e amiúde à situação da Igreja durante a guerra; por outro lado, as obras de Nobécourt e de Lewy, que acabam de ser publicadas, são especialmente elucidativas, em primeiro lugar, sobre «os anos de aprendizagem de Dom Eugenio Pacelli» e, em segundo, sobre as relações entre a Santa Sé e o Terceiro Reich, durante o pontificado de Pio XI. Pareceu-nos supérfluo determo-nos longamente sobre questões já tão bem estudadas.
Pelo contrário, esses dois autores trataram de uma forma bastante breve o problema que constitui o objeto do nosso trabalho (Nobécourt consagrou-lhe, sem dúvida, páginas notáveis, mas não teve acesso aos documentos dos arquivos alemães sobre a política da Igreja da Alemanha e, apesar da possibilidade de recorrer aos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich, praticamente não os utilizou para analisar a atitude de Pio XII durante os anos da guerra).
Ao método de investigação que escolhemos, oporão outro argumento, talvez mais grave do que os anteriores. Pela sua própria natureza, o documento diplomático descreve e analisa os dados de uma decisão em termos significativos para o «jogo» político (ou militar); o alcance moral de um ato, a angústia que uma decisão grave pôde provocar na consciência de quem assume a responsabilidade por ela, não interessam ao diplomata ou só o preocupam de uma forma secundária. Por esse facto, os documentos diplomáticos não constituem fontes suficientes para o historiador desejoso de compreender os motivos de uma decisão importante que ultrapasse o nível de simples manobra. Estas observações, que se aplicam ao estudo das iniciativas de qualquer homem de Estado, assumem uma evidência incontestável quando se aborda o âmbito das decisões de um chefe espiritual, cujos motivos são, com frequência, influenciados por considerações de ordem essencialmente espiritual.
Aceitamos os limites que a nossa investigação não poderá ultrapassar. Mesmo na qualidade de homem político, Pio XII não pode ser estudado unicamente com base nos documentos diplomáticos a que tivemos acesso. Estes textos esclarecem apenas sobre determinados aspetos de uma política e, cremos, certos traços de uma personalidade. Por mais parcial que seja a imagem obtida, esperamos, apesar de tudo, que esses documentos, apresentados com imparcialidade, deem um contributo útil para a investigação histórica.
Saul Friedländer
Editora Sextante