Dee Dee Bridgewater tem agora novo projeto, o album Elemental, com o pianista Bill Charlap, que vai ser lançado a 13 de junho.
Dee Dee Bridgewater tem agora novo projeto, o album Elemental, com o pianista Bill Charlap, que vai ser lançado a 13 de junho.

"O jazz, que é a única forma de arte musical original que veio dos EUA, é agora celebrado em todo o mundo”

Concerto We Exist do Quarteto de Dee Dee Bridgewater é domingo em Lisboa, no CCB. Vencedora de três Grammy e um Tony, cantora falou por Zoom, de Nova Orleães, sobre música, América de Trump e o papa.
Publicado a
Atualizado a

Nasceu em Memphis, no Tennessee, mas mudou-se para Flint, no Michigan, quando era criança. Tem memórias dessa época nos Estados Unidos com as leis de segregação racial, ou é algo que nunca vivenciou porque a sua família foi para norte onde a realidade era diferente?

O racismo nos Estados Unidos está em todo o lado, e pode manifestar-se de diferentes formas. Sofri racismo durante toda a minha vida, independentemente do local onde vivi. Quando viajo, também vivencio isso. De Memphis saí com três anos, os meus pais estavam a trabalhar lá. Não eram de lá. A minha mãe era do Michigan e o meu pai do Kentucky. Mudaram-se algum tempo para Memphis para trabalhar.

A Flint onde cresceu era uma cidade racialmente mista?

Diria que mista, sim. Muitos afro-americanos mudaram-se para o Michigan, e para Flint em particular, por causa da indústria automóvel. Por causa das fábricas da General Motors. E muitas pessoas que viviam em Flint, e eram afro-americanas - é por elas que posso falar -, mudaram-se para lá por causa da indústria automóvel e das ofertas de emprego.

Como era a relação entre brancos e negros em Flint naquela época? Estamos a falar dos anos 1950 e 1960.

O meu pai era professor e foi depois diretor de uma escola secundária. A minha mãe era uma executiva na General Motors. Fui educada numa escola católica. Havia ali um racismo evidente. Eu era um dos quatro alunos negros de toda a escola. As meninas da minha sala não me convidavam para dormir em casa delas. Quando ia aos bailes da escola, nunca me deixavam dançar porque era negra e todas as outras crianças eram brancas. Questionavam-me sobre o facto de as palmas das minhas mãos serem brancas, mas quando virava as mãos, a minha pele ser castanha. As meninas brancas não compreendiam isso.

O movimento de Direitos Civis, a luta contra a segregação racial encabeçada por Martin Luther King, fez a diferença para si?

Claro que sim. Fez a diferença na vida de todos os negros em termos da forma como éramos tratados e onde nos era permitido ir. Quando era pequena, passei pela experiência de ir a um centro comercial, sentar-me ao balcão de uma máquina de refrigerantes e ouvir de uma mulher branca que não me podia sentar ali. Tinha sete anos e estava com a minha irmã de cinco anos. E a senhora disse, “querida, sabes que não te podes sentar neste balcão”. E eu não sabia disso porque a minha mãe não me tinha dito. Portanto, com o movimento dos Direitos Civis, é claro que houve mudanças. Passaram a aceitar-nos em locais onde normalmente não iríamos porque não nos era permitido antes. E passou a haver oportunidades de emprego que não estavam disponíveis antes do movimento dos Direitos Civis. Quando andava no liceu, trabalhei para o distrito de Genesee, que é onde fica Flint. Trabalhei num escritório de gestão de compras. Trabalhei num hospital no setor de admissões. E tenho a certeza de que estes empregos que tive, mesmo sendo em 1964, em 1965, só foram possíveis por causa do que estava a acontecer no país com o movimento dos Direitos Civis.

Essa experiência negra nos Estados Unidos, com a escravatura até à Guerra Civil, e a segregação racial até aos anos 1960, reflete-se na música? O jazz resulta do legado afro-americano?

A nossa música é música de negros. Veio da música dos afro-americanos. O jazz foi desenvolvido nos Estados Unidos. A cidade conhecida pelo nascimento do jazz é a cidade em que vivo agora, Nova Orleães. Esta música teve origem com o povo afro-americano. Foi emprestado e transformado noutras formas, mas a raiz é a música negra.

Como foi apresentada à música? Foi porque os seus pais gostavam? Como descobriu o jazz?

Os meus pais ouviam música quando eu era criança. O meu pai tocava trompete por hobby, e em Memphis foi professor numa das duas importantes escolas secundárias afro-americanas. A escola onde lecionava chamava-se Manassas. Muitos músicos de jazz saíram daquela escola, músicos proeminentes. Falo de pessoas como Phineas Newborn, Charles Lloyd, George Coleman, Harold Mabern.

Todos estes são nomes familiares para si desde a infância?

São músicos que se tornaram conhecidos e tiveram grandes carreiras e que tinham sido alunos do meu pai. O meu pai chamava-se Matthew Garrett. Estes músicos falavam frequentemente sobre os seus primórdios e sobre os ensinamentos que receberam do meu pai. Cresci numa casa onde se tocava música, onde o meu pai tocava trompete, onde a minha mãe cantava num coro. Eu cresci numa família musical. Quando tinha 16 anos, comecei a trabalhar como cantora numa banda que atuava no Michigan. Era liderada por um homem chamado Sherman Mitchell. O meu pai tocava na banda dele. O meu pai apresentou-me o Sherman, que me contratou para cantar com ele em restaurantes. Também participei em concursos de música jazz e ganhei. Comecei a trabalhar em clubes de jazz em Flint, mas como tinha 16 anos, o meu pai teve de me supervisionar. Ele tinha de ficar comigo nesses clubes porque senão eu não tinha autorização para entrar.

Jazz é sempre jazz, mas quão diferente é a sua música hoje da música daquele momento?

Estamos a falar dos anos 60. Estamos a falar de há 60 anos. Claro que a música mudou. Claro que a minha música mudou. A minha base ainda é o jazz. A forma como abordo a música mudou ao longo dos anos, mas a minha crença e o meu foco ainda estão em manter vivo o jazz tradicional, o jazz vocal, o jazz vocal tradicional vivo, à la Ella Fitzgerald ou Betty Carter. Ainda incluo o scatting no meu canto quando me apresento. O que estou a fazer atualmente é música que foi importante para mim nos anos 70 e 80, materiais com consciência social. Também estou a fazer materiais de uma artista que foi importante para mim e que esteve muito envolvida no movimento dos direitos civis, que é a Abbey Lincoln. Portanto, a minha música continua a mesma. Estou a refazer algumas músicas que fiz nos anos 70 e 80.

A experiência de viver em França teve também uma forte influência na sua música?

Fez uma grande diferença. Porque nos 24 anos que vivi em França, descobri outras culturas, outros países, outros estilos de música e, claro, isso influenciou a minha música.

Tenho curiosidade sobre uma viagem que fez à União Soviética no final dos anos 1960. Que impressão teve uma jovem americana sobre a Rússia?

Foi em 1969, para ser exata, e foi uma viagem de intercâmbio cultural em que participei, pela Universidade do Illinois. Foi uma experiência interessante. Nessa altura, ainda era a União Soviética. Havia ainda muitos receios em relação às culturas estrangeiras. Nós, ou seja, a banda e eu, eu era a única mulher na banda, tínhamos de ser acompanhados em quase todo o lado para não termos contacto com jovens da nossa idade, estudantes universitários. Tudo foi muito controlado. Fomos seguidos pelo KGB. Se eu saísse para caminhar sozinha e visse jovens russos a quererem vir ter comigo para conversar, seriam logo afastados da rua por mulheres mais velhas que fingiam varrer os passeios.

Os jovens russos eram curiosos sobre a música americana?

Não sei dizer ao certo. Não tive muitas interações. Eu sei que estavam curiosos sobre mim como pessoa negra. Fui a algumas jam sessions, secretas, quando estive na Rússia, em Moscovo, em São Petersburgo em particular. A nossa banda foi escoltada num autocarro com as luzes apagadas, nós sentados agachados abaixo das janelas, e fomos retirados do autocarro dois a dois e levados até uma porta num beco escuro com uma fechadura secreta, descendo até ao subsolo e apresentando-nos em locais onde era impossível sequer estar de pé.

Essa visita à Rússia mudou a forma como olhava para o seu país?

Tinha 19 anos. E ainda estava a sofrer racismo no meu país. Portanto, para mim, foi uma espécie de extensão disso, porque era uma espécie de racismo, se quisermos, contra a música jazz e a interação entre russos e estrangeiros. Portanto, só conheço o meu caso, que foi em torno do jazz. Não vivenciei nada para além disso e de estar em palco. Regressei em 1972 com a Orquestra Thad Jones e Mel Lewis.

E fez concertos na Rússia já depois da queda do comunismo?

Sim, as pessoas lá gostam muito de jazz. Trabalhei em diversas ocasiões na Rússia, desde os anos 90 até 2018, que foi o mais recente concerto, com um saxofonista russo chamado Igor Butman. E fui tratada com muito respeito quando lá trabalhei, desde a queda do comunismo e desde que o país se abriu. Agora está como que fechado outra vez. Portanto, sim, tive vários encontros e depois houve um musical russo que veio a Paris, que foi produzido em parte por Pierre Cardin, e fui convidada para dançar e celebrar esse musical. Assim, mais uma vez, envolvi-me com músicos e artistas russos.

Durante os seus concertos pelo mundo sente realmente que o jazz é uma música universal? É algo muito americano, muito afro-americano, mas que na realidade consegue conquistar pessoas de culturas bem diferentes?

Bem, o jazz hoje é universal. Temos agora o Dia Internacional do Jazz, que foi criado pela UNESCO e por Herbie Hancock, e eu faço parte do conselho do Instituto de Jazz de Herbie Hancock, por isso celebrámo-lo em Abu Dhabi no dia 30 de abril. Assim, o jazz, que é a única forma de arte musical original que veio dos Estados Unidos, é agora celebrada em todo o mundo. Agora trabalho com músicos internacionais, de Itália, de França. Trabalho com músicos fora dos Estados Unidos e faço-o desde que vivi em França. Quando vivi em França, todos os músicos com quem trabalhei eram franceses ou de outros países europeus. A minha pianista é americana e é a minha diretora musical, por isso continua a ser a minha constante. As minhas bandas agora são femininas.

Referiu que foi educada como católica. Está surpreendida com a recente eleição de um papa americano?

É bastante emocionante. Não sou católica praticante, embora tenha sido batizada como católica e ainda acredite em muitas das coisas fundamentais que me foram ensinadas na religião. Acho entusiasmante que um americano tenha sido eleito papa. Também acho muito fascinante que este papa, Leão XIV, tenha alguma história crioula. Tem um pouco de sangue negro, mas isso não está a ser muito falado. A família da sua mãe vivia em Nova Orleães. E eram crioulos. Penso que é muito cedo para falar do papa, mas ele parece estar a seguir os passos do papa Francisco.

Acha que um papa americano, Robert Francis Prevost, do Illinois, poderá de alguma forma influenciar a América de hoje, a América do presidente Donald Trump?

Estamos num momento muito estranho nos Estados Unidos. Temos uma Administração louca, que só está interessada na riqueza à custa de nós, o povo, as pessoas normais. Por isso não sei como é que este papa vai influenciar o povo americano. Não sei porque já não conheço o meu próprio país. Temos uma administração que está a tentar apagar a história do povo afro-americano.

A eleição de Barack Obama foi apenas um fenómeno ou representou mesmo um sinal de mudança na sociedade americana, afinal era o primeiro presidente afro-americano?

Bem, foi um fenómeno. E também foi uma mudança significativa. E por causa dos seus oito anos de serviço, as pessoas que são racistas decidiram que isto nunca mais iria acontecer. E agora temos esta administração. Na minha modesta opinião, acredito que houve manipulação da nossa eleição. Porque aquela pessoa foi declarada vencedora numas três horas e ganhou a presidência. Por isso, para mim, era impossível que todas as contagens estivessem incluídas. Não queriam uma mulher negra, uma mulher, para governar o país. São tempos terríveis. E esta administração está a influenciar a política em todo o mundo. Temos então um aumento do racismo na Europa. Eu experimentei isso em viagens à Europa. Mas, para mim, esta é uma constante. Sinto sempre racismo.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt