O Irão dos homens-monstro
Nesta correria de estreias dos melhores filmes da temporada chega outra das pérolas do momento, Holy Spider, de Ali Abbasi, pesadelo iraniano sobre um caso de fanatismo religioso ou mais uma crónica de homens que odeiam as mulheres.
Baseado num caso verdadeiro de um massacre a prostitutas numa cidade santa do Irão, Holy Spider é um dois-em-um: um thriller de caça ao serial-killer e também um drama sobre a misoginia reinante na sociedade iraniana. Em Cannes venceu o prémio de melhor atriz, Zar Amir-Ebrahimi. Não é cinema iraniano mas sim uma produção sueca do escandinavo Ali Abbasi, cineasta de origens iranianas aqui, por certo, a ajustar contas com o fundamentalismo religioso do seu país de origem.
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Depois do genial Na Fronteira, fantasia nórdica sobre ogres e seres humanos, Abbasi volta a filmar monstros humanos, neste caso um monstro: um homem de família honrado que decide começar a matar prostitutas na sua região. Trata-se de uma história verdadeira que relata a forma como esse construtor civil "limpava" a sua cidade dos pecados da carne. Um assassino que insistia em dar pistas à polícia dos seus hediondos crimes, quase todos por asfixia depois de se passar por um mero cliente.
Rodado na Turquia e na Jordânia por razões óbvias, trata-se de um forte arremesso contra a corrupção judicial no Irão bem como contra o fanatismo religioso num país onde o povo manifesta-se em prole deste "justiceiro moral". Abbasi não faz a coisa por menos: coloca a câmara no meio do crime provocando um desconforto profundo no espetador e usa todos os poderes do cinema: música forte, grandes planos intensos e uma escala de produção que retira o filme do nicho do pequeno objeto realista e pobrezinho, algo que poderá fazer espécie a muito boa gente e é aí que será sensato relembrar que não há mesmo pontes de conexão com o mais tradicional registo de cinema iraniano.
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Acima de tudo, há uma tentativa explícita do filme assumir a sua pose de thriller e de policial de investigação. Cinema de género, portanto, mas sempre sem perder o vínculo ao real e à descrição de uma sociedade em crise, em especial pelos olhos de uma jornalista, personagem feminina que sente na pele o olhar tóxico masculino. Abbasi prefere não fazer tese sobre a banalidade do mal mesmo quando a reflexão é imediata, o filme está antes em simbiose com um conceito sensorial das camadas do ódio. E se o thriller é sempre psicológico, o rigor e a força das coreografias dos crimes adquirem uma carapaça física literal. O convite é para estarmos nesse sufoco das vítimas, essa é a experiência que convoca a carga extenuante. E vemos esta caça ao homem com uma tensão sem distância, sempre com uma bafo da morte bem colado. É coisa de caça e presa... "Coisa" de horror onde se sente a respiração, o suor e o sangue e há uma câmara que não se desvia, que nos põe perante aquilo que não se mostra, não se costuma mostrar...
Ajuda também que haja uma atriz ofegante que dá corpo a uma revolta feminina, Zar Amir-Ebrahimi, a jornalista que se transforma em prostituta como isco.
Holy Spider é, sem muito esforço, um estupendo cartão de visita de um cineasta visionário que nos coloca no furacão do medo. Um medo de um mal santificado que é farol de uma doença que destrói cada vez mais este Irão. O Irão dos homens-monstro.

dnot@dn.pt