O húngaro que leva a música cigana a um lagar no Alentejo

Ferenc Snétberger toca este sábado no Lagar do Marmelo em Ferreira do Alentejo no âmbito do festival Terras Sem Sombra. Com ele em palco estarão alguns dos alunos da escola que o guitarrista húngaro que alia a tradição cigana ao jazz e à música clássica abriu em 2011 para ajudar crianças e jovens desfavorecidos com talento para a música.
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"Na escola toco todos os dias com os miúdos", conta Ferenc Snétberger sentado na embaixada da Hungria em Lisboa. São alguns desses alunos - jovens com talento musical e de famílias desfavorecidas, na larga maioria de etnia cigana, como o próprio Ferenc - que o músico húngaro trouxe com ele a Portugal para o acompanhar no concerto deste sábado à noite em Ferreira do Alentejo, no âmbito do festival Terras Sem Sombra. Pelas salas da embaixada, na Calçada de Santo Amaro, ouve-se a voz da soprano Orsolya Janszova, enquanto Ferenc vai explicando o seu projeto e como adora improvisar. "Eu sei que tenho um programa mas não sei o que vou tocar. Estou sempre a mudar. Começo sempre do zero. Essa é a surpresa", garante.

Nascido em 1957 no Norte da Hungria, Ferenc Snétberger é hoje um dos mais conhecidos guitarristas de jazz da Hungria. Mas nem tudo foi fácil, sobretudo no início. Mais novo de sete filhos nascido numa família roma (como gosta de ser identificado), quando as coisas se complicavam, Ferenc e os irmãos sabiam que podiam sempre contar com a música. "O meu primeiro professor foi o meu pai. Era autodidata. Nunca aprendeu a tocar, nunca andou na escola. Nunca teve tempo", recorda o músico, antes de seguir para Ferreira do Alentejo, onde vai atuar no Lagar do Marmelo.

Crescer numa família numerosa a viver em duas divisões não foi fácil, admite, mas a música "era motivo da maior felicidade". E foi por volta dos 14 anos que Ferenc teve a certeza que queria ser guitarrista. Formado em jazz e música clássica mas com um estilo muito influenciado pela tradição cigana, quando tinha já a carreira consolidada, percebeu que queria fazer algo para ajudar jovens talentosos mas com dificuldades. "Comecei a perceber que havia muita juventude com talento à minha volta", recorda. Foi então que decidiu "iniciar qualquer coisa que pudesse ajudar essa juventude com talento, mesmo que sejam crianças que tocam na rua".

Em 2011 nascia o Snétberger Musical Talent Center, uma escola que dá educação musical a crianças desfavorecidas. "Num sistema de educação musical normal, muitas destas crianças não veriam o seu talento reconhecido, são crianças que se perdem no sistema normal, que vão um bocadinho ao lado da norma", explica o músico. Por isso Ferenc criou um sistema que tem muito a ver com a sua experiência. "Para mim também foi assim. Às vezes bastava um olhar para eu entender o que tinha de fazer. Na escola tocamos com as crianças. Começam logo a fazer música".

Todos os anos, a escola faz um casting para 200 jovens. Desses, escolhem 20. "Há sempre um contingente de 60 alunos. Num ano vão embora 20 e entram outros 20. Dos que ficam alguns participam no projeto educativo. Podem ficar cinco ou seis anos, Mas vão ensinar. Conhecem o sistema e tornam-se mentores", conta Ferenc, sem esconder o orgulho por alguns desses alunos terem sido depois aceites nas melhores escolas de música da Hungria, como a Academia Liszt, que deve o nome a um dos mais famosos compositores húngaros, Franz Liszt.

Uma grande família

"Somos uma grande família. Gostamos muito uns dos outros. Na escola não aprendem só música. É uma lição para a vida, ensina-os a crescer", explica Ferenc, antes de acrescentar com um sorriso: "muitas vezes os alunos vêm de família muito pobres, com dificuldades, e tocarem comigo é como um sonho tornado realidade".

Ele próprio criado numa família cigana, Ferenc garante nunca ter encontrado resistência por parte dos pais dos seus alunos em os filhos irem à escola. "Eu sei que em alguns países esse é um grande problema. Por exemplo em Espanha, onde estivemos recentemente, muitas famílias ciganas não querem que os filhos vão à escola. Mesmo que sejam muito talentosos, eles não querem que vão. Mas na Hungria é diferente. Os ciganos querem que os filhos vão à escola e que tenham uma carreira. Estão a pensar no futuro", afirma.

Pouco mais de 300 mil segundo o último censo, mas os números divergem e podem até ser mais do dobro, num país de dez milhões de habitantes, a comunidade roma na Hungria ainda é por vezes alvo de discriminação, com a muitos dos seus membros a viver em zonas rurais e mais pobres. "Há casos de crianças, sobretudo as mais pequenas, que vêm de famílias com situações muito complicadas e, por vezes, é difícil ajudar", admite Ferenc. "As famílias ciganas são muito coesas. E por isso no caso das crianças mais jovens por vezes é difícil aceitarem que a criança esteja longe de casa durante muito tempo". Os alunos do Snétberger Musical Talent Center dormem na escola, tanto no verão, durante seis semanas, como durante três semanas na primavera e outras três no outono.

Mistura de sons

Inspirado pela tradição cigana, mas também pela música brasileira, Ferenc garante apreciar também a música portuguesa. E até já tocou com Carlos Bica, com Maria João e Mário Laginha. A viver em Berlim, o guitarrista explica que o que o fascina tanto no Brasil como em Portugal é "a língua", diz assim mesmo, em português. "A minha música também é um misto entre a música clássica e o jazz europeu. Há muito fado nela também", diz.

Em Ferreira do Alentejo, promete um concerto dividido em duas partes, a primeira com música dele e a segunda com música clássica. "Vamos tocar Liszt, Beethoven, talvez Bach. Espero que as pessoas gostem", remata.

A Música como Passaporte: Um Roteiro Magiar
Sábado 11 de maio
21:30
Lagar do Marmelo, Ferreira do Alentejo
Entrada gratuita

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