exclusivo
Cultura
13 março 2021 às 07h00

O Gajo leva a campaniça para o mundo

Após ter trazido a viola campaniça para a cidade, O Gajo torna-a global em Subterrâneos, com Carlos Barretto no contrabaixo e José Salgueiro na Percussão, num álbum que mescla tradição com jazz, rock, fado e tudo o que por lá couber.

Foi durante um concerto em Beja, já lá vão uns anos, que João Morais, 48 anos, se apaixonou pela sonoridade da viola campaniça. Guitarrista reconhecido nos meios mais underground do rock nacional, enquanto membro de bandas como os Corrosão Caótica, Carbon H ou Gazua, trouxe uma com ele para Lisboa e foi com ela que cumpriu o sonho antigo de criar um som próprio, "que imediatamente fosse reconhecido como português". Através do rock, literalmente na sua vertente mais punk, ganhou o gosto e o desejo de querer explorar a sonoridade de todas as guitarras, "fossem elas americanas ou japonesas", mas foi só após conhecer Paulo Colaço, "um tocador de viola campaniça", na tal noite em Beja, que João encontrou o trilho há tanto procurado, trocando as voltas a este instrumento tradicional alentejano e trazendo-o para a confusão da grande cidade. O primeiro passo foi dado em 2017, com o aclamado álbum, Longe do Chão, assinado simplesmente como O Gajo, que através de 11 temas instrumentais transportava o ouvinte numa nostálgica viagem por uma Lisboa cada vez mais em vias de extinção, guiado por uma viola campaniça que tanto soava a fado como a punk rock.

Dois anos depois, voltou a fazer-se ao caminho com As 4 Estações de O Gajo, trabalho conceptual inspirado na obra Le Quattro Stagioni, de Vivaldi, composto por quatro eps de cinco temas cada, lançados a cada estação do ano e com títulos a remeterem para a tal partida (ou chegada): Rossio, Santa Apolónia, Alcântara-Terra e Cais do Sodré.

Agora é novamente tempo de seguir viagem com o novo Subterrâneos, embora desta vez a mesma seja mais interior do que física, por consequência da pandemia, como o próprio explica em seguida ao DN. Paradoxalmente, é talvez a mais ambiciosa de todas, porque quando mergulhamos em nós próprios há sempre novas direções para onde rumar, mas também decisões mais complicadas de tomar. "Gosto de me reformular e de não repetir fórmulas", começa por dizer. Foi também por isso que resolveu trazer mais gente para este disco, transformando o solitário projeto em nome próprio de O Gajo num trio composto com dois pesos pesados da música portuguesa, o contrabaixista Carlos Barretto e o percussionista José Salgueiro. "Senti necessidade de trazer mais alguém para o barco, até porque foi um disco não planeado, que apenas surgiu devido à pandemia. Como deixou de haver trabalho, agarrei-me à minha medicação, que é a guitarra, como sempre faço quando tenho problemas". Em fevereiro do ano passado não tinha previsto fazer um disco num futuro tão próximo, mas em março já ia a toda a velocidade. "Pareceu-me o mais natural a fazer, durante um período de meses em que ia estar simplesmente parado". O próprio título, Subterrâneos, remete para esse processo, "como se fosse uma viagem ao nosso interior, a que não estamos habituados, mas tivemos de estar, devido ao confinamento". Os dez temas do disco são também pautados por diversas referências poéticas, de Camões e Bocage a autores mais contemporâneos como o portuense Artur Rockzane ou o catalão Jesus Lizano, resultantes das interpretações muito pessoais de poemas que João Morais foi lendo ao longo do processo, transformando-os depois em música.

DestaquedestaqueAgora é novamente tempo de seguir viagem com o novo Subterrâneos, embora desta vez a mesma seja mais interior do que física, por consequência da pandemia.

"Até parece mal dizer isto, mas de certa forma tive sorte com a pandemia. Deu-me tempo para ser arrojado e preparar o terreno para os convidados, que só chegaram já perto do verão, quando o trabalho já ia bastante adiantado", confessa. O primeiro a entrar na carruagem foi Carlos Barretto, que já havia feito uma participação no trabalho anterior de O Gajo. "Basicamente fiz-me ao piso quando o conheci e ele aceitou de imediato o convite. A partir daí criámos uma relação mais regular e foi a primeira pessoa a quem liguei para falar deste disco". E foi Barretto quem sugeriu (e convidou) José Salgueiro a acompanhá-los. "Quando soube que os ia ter no meu disco abri uma garrafa de vinho e brindei sozinho", diz João Morais com humor. Antes, porém, teve de "criar uma narrativa própria", que deixasse a linguagem de O Gajo intacta, mas ao mesmo tempo lhe permitisse avançar por novos territórios. "Não queria pô-los a criar, mas sim que me abrissem novos espaços para a viola, o que acabou por acontecer, porque são ambos músicos muito experientes, mas também bastante curiosos e a minha sonoridade encaixou muito bem neles", reconhece. E são vários os ambientes musicais que se cruzam nestes Subterrâneos, por entre jazz, fado, rock e sonoridades tradicionais mais ou menos exóticas. "Se é indefinível é bom sinal, porque esse é o espaço onde gosto de me mover", sublinha.

dnot@dn.pt