O fim de uma era

O cinema de Satyajit Ray está de volta às salas, com dois inéditos em cópias restauradas. Um deles, O Salão de Música, retrato magistral da ruína de um aristocrata - ou o choque entre o velho e o novo na cultura indiana.

Não precisaríamos de nenhum motivo especial para regressar à obra de um dos maiores cineastas de sempre, mas aí está: no último ano assinalou-se o centenário de Satyajit Ray (1921-1992), e este ano passam três décadas sobre a sua morte. Para comemorar estas datas, chegam agora ao cinema Medeia Nimas, em Lisboa (e posteriormente a outras salas), dois filmes nunca estreados comercialmente em Portugal. São eles O Invicto (Aparajito, 1956), segundo título da conhecida trilogia de Apu, e O Salão de Música (Jalsaghar, 1958), que Ray realizou precisamente a meio dessa trilogia, cumprindo a sua máxima pessoal de não fazer dois filmes semelhantes um a seguir ao outro.

Sendo o mais internacional dos realizadores indianos, Satyajit era também um dos grandes cronistas da sua própria cultura, que não fazia cedências ao olhar ocidental. "Todos os meus filmes são feitos a pensar no meu público bengali. (...) Mas agora existe um grande público que não só usa os ouvidos, como os olhos e o espírito. Esse é o público que faz dum filme sério uma proposta viável", escreveu para a revista britânica Sight and Sound, em 1982. Ouvidos, olhos e espírito é de resto o que em nós se deslumbra perante O Salão de Música, filme cuja decadência sumptuosa - assente na figura de um aristocrata orgulhoso e apegado ao passado - ganha expressão encantatória na música clássica indiana.

Adaptado de um conto da literatura bengali, Jalsaghar tem no ator Chhabi Biswas uma espécie de Norma Desmond (a lenda do cinema mudo de O Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder), qual astro isolado na sua casa-galáxia. Ele assume aqui a postura resistente, e quase acriançada, de um grande proprietário (um "Zamindar") que nos anos 1920, depois de o governo indiano ter abolido o sistema feudal, se afasta definitivamente do mundo exterior, encontrando refúgio sobretudo no seu luxuoso salão de música - o compartimento da casa onde organiza recitais para os homens da vizinhança, como quem desfruta dos últimos prazeres da vida (e de uma era), vigiado pelos seus nobres antepassados que estão expostos em quadros na parede.

De facto, percebe-se o que Ray quer dizer com filmes feitos a pensar no público bengali. Há uma sensibilidade local inegável em Jalsaghar, desde logo, nas longas sequências musicais (que tem o seu equivalente contemporâneo em O Discípulo, de Chaitanya Tamhane), com destaque para a hipnotizante dança do derradeiro recital, um momento decisivo que culmina na ilustração do choque entre a honra do dinheiro velho e a pequenez do novo-riquismo.

Curiosamente, o realizador foi criticado na altura por se colocar do lado do seu protagonista, como que elogiando um "passado glorioso". Mas a verdade é que Ray não produz qualquer discurso moral, limita-se a observar o declínio de um tempo através de um homem. E, no processo, envolve-nos no fascínio da ilusão de grandeza desse aristocrata, que gasta tudo o que houver para gastar, perdido no jogo de espelhos e candeeiros que são os últimos sinais de opulência num mundo em ruínas. Se ainda restarem dúvidas: uma obra-prima.

dnot@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG