Jeffrey Wright, protagonista de American Fiction, nomeado para o Óscar de melhor ator.
Jeffrey Wright, protagonista de American Fiction, nomeado para o Óscar de melhor ator.

O filme “esquecido” dos Óscares

Propondo uma subtil desmontagem da ideologia do politicamente correcto, American Fiction é um dos filmes em destaque no panorama das nomeações para os Óscares do próximo domingo. Infelizmente, não passou pelas salas do nosso país, mas pode ser visto numa plataforma digital.
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Falta pouco para os Óscares: a cerimónia está marcada para domingo, dia 10, no Dolby Theatre, em Los Angeles (com transmissão na RTP1). Neste contexto, até mesmo o espectador mais atento à actualidade, poderá julgar que, entre os dez títulos nomeados para o Óscar de melhor filme de 2023, há um que continua por estrear: American Fiction, primeira longa-metragem de Cord Jefferson. Pois bem, se estas linhas podem ter algum valor prático será no sentido de dar a saber ao leitor que, há poucos dias, sem qualquer promoção que se visse, o filme passou a estar disponível numa plataforma digital, a Prime Video.

Há que dizer alguma coisa sobre este marketing que não existe… Por duas razões fundamentais: primeiro, porque apesar do cinismo reinante em relação à crítica de cinema, importa lembrar que, melhor ou pior, a respectiva actividade (de divulgação, reflexão e pensamento) não decorre de qualquer princípio de marketing; depois, porque somos levados a reconhecer que muito desse marketing vive de uma redundância sem imaginação, satisfeita com o empolamento dos mesmos produtos rotineiros, não se dignando sequer investir um mínimo de trabalho num filme como este que, além de surgir com a chancela de um grande estúdio de Hollywood (Metro Goldwyn Mayer), acumula cinco importantes nomeações para os Óscares. Aliás, a Prime Video consegue mesmo a “proeza” de apresentar apenas uma sinopse (mal) traduzida da que podemos encontrar no iMDB, sem mencionar as nomeações de American Fiction para os Óscares.

Contra os estereótipos

Porque é que tudo isto é lamentável? Porque, felizmente, a produção cinematográfica — nomeadamente a que ostenta o “selo” de Hollywood — continua a exibir uma diversidade que, salvo melhor opinião, podia (e devia) ser valorizada. American Fiction distingue-se pela serena coragem de enfrentar a ideologia politicamente correcta que obriga a tratar os negros a partir de um olhar maniqueísta, tão simplista quanto demagógico, que tende a reduzir as personagens afro-americanas a “símbolos” compulsivos de uma “entidade” colectiva susceptível de ser descrita, entendida e celebrada a partir de generalizações de grosseiro paternalismo.

O argumento, da responsabilidade do próprio Cord Jefferson (tendo por base o romance Erasure, de Percival Everett), desenvolve-se a partir da insólita contradição em que o escritor Thelonious Ellison, “Monk” para os mais próximos, se descobre enredado. Cansado dos lugares-comuns que marcam muitas representações literárias (também televisivas, também cinematográficas) dos negros americanos, “Monk” decide escrever um romance enraizado naqueles lugares-comuns… Trata-se de uma brincadeira privada, para mais assinada com pseudónimo, como quem limpa o espírito da demagogia social e mediática que o rodeia, mas o seu agente empenha-se em publicar o livro. Resumindo: “Monk” consegue, pela primeira vez, um grande sucesso de vendas, sendo forçado a alimentar os sinais da sua identidade falsa…

Jeffrey Wright, intérprete de “Monk”, tem destacado os elementos dramáticos que o seduziram no projecto de American Fiction. A exposição das grosserias do politicamente correcto estava longe de ser o único factor a ter em conta. Como Wright refere numa entrevista ao site Collider (22 dez. 2023), é fundamental o facto de “Monk” surgir enquadrado por uma família de muitas convulsões emocionais, com a mãe (Leslie Uggams) cada vez mais marcada pela doença de Alzheimer e o irmão (Sterling K. Brown), consumidor de drogas, descoberto pela mulher numa relação sexual com um homem… Dito de outro modo: nem “Monk” nem a sua família surgem como “bandeiras” de causas abstractas. Se os descobrimos tão contraditórios e, por vezes, tão comoventes, isso resulta do facto de o filme saber retratá-los através de um elaborado realismo, capaz de integrar um humor delicado, por vezes pontuado por um irresistível sarcasmo.

A caminho de um Óscar?

O “esquecimento” a que American Fiction foi votado no mercado português é tanto mais chocante quanto não é a primeira vez que um filme tão bem colocado nas nomeações para os Óscares nem sequer passa pelas salas. Recordo apenas o exemplo da marginalização a que foi sujeito Crazy Heart (2009), apesar de o seu protagonista, Jeff Bridges, surgir como grande favorito para o Óscar de melhor actor — Bridges ganhou mesmo, mas o filme nunca foi exibido nas salas…

Não se trata de alimentar profecias mediáticas (também não é essa a vocação da crítica de cinema). Ainda assim, vale a pena referir que, além de integrar a lista dos dez nomeados para melhor filme do ano, American Fiction consegue mais quatro importantes nomeações: para Jeffrey Wright e Sterling K. Brown, respectivamente como melhor actor e melhor actor secundário; Cord Jefferson, pelo seu argumento adaptado; e Laura Karpman, compositora da belíssima banda sonora. Evitemos também o simplismo argumentativo segundo o qual algum ou alguns Óscares para American Fiction poderão “confirmar” um qualquer ponto de vista crítico sobre o filme — em qualquer caso, refira-se que vários analistas da imprensa especializada de Hollywood citam Cord Jefferson como grande favorito na categoria de melhor argumento adaptado.

Trata-se, isso sim, de reconhecer o combate desigual que os filmes (a começar pelas produções de Hollywood) são obrigados a travar. Neste tempo de discursos, campanhas e clichés jornalísticos, sobretudo televisivos, que reduzem as relações humanas a categorias deterministas ou panfletárias, recalcando as singularidades individuais, American Fiction recorda-nos que cada história que se conta — cada ficção, precisamente — não é uma mera “descrição” do que quer que seja, mas sim uma forma de entender, habitar e partilhar o mundo. Já agora, sem falsas modéstias, esse é também um princípio de pensamento em que a crítica de cinema se reconhece.

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