O feminino em forma de teorema

Distinguido com o Óscar de melhor argumento original, <em>Uma Miúda com Potencial</em> é uma comédia dos nossos dias que sabe refazer os valores de uma certa herança clássica.
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Ao descobrirmos agora um filme como Uma Miúda com Potencial, da inglesa Emerald Fennell, não podemos deixar de o inscrever num mapa temático desenhado pelo movimento #MeToo. Dito de forma esquemática, esta é a história de Cassie Thomas, uma "jovem prometedora" (título original: Promising Young Woman) com uma existência, no mínimo, desconcertante. À beira dos 30 anos, tendo falhado os estudos de medicina, Cassie vive com os pais e trabalha num café; mais ou menos uma vez por semana, transfigura-se em frequentadora de clubes noturnos, vai-se embebedando e acaba por se envolver em encontros fortuitos com homens.

Carey Mulligan interpreta tudo isso com a alegre frieza de quem está a demonstrar um teorema. Na verdade, Cassie faz o que faz de forma absolutamente consciente, numa cruzada motivada pela memória de uma situação de abuso sexual que, nos tempos da escola secundária, testemunhou: o seu objetivo é, agora, castigar os homens que tentam seduzi-la.

Um filme é um filme é um filme... E nem mesmo a justeza moral da defesa dos direitos das mulheres se pode confundir com a promoção gratuita das maiores mediocridades cinematográficas. Lembremos o exemplo de Ocean"s 8 (2018), filme protagonizado por algumas talentosas atrizes - Cate Blanchett, Sarah Paulson, Sandra Bullock, etc. - que se apresentou como versão "feminista" da série de Steven Soderbergh iniciada com Ocean"s Eleven (2001). Infelizmente, estávamos perante um espetáculo disparatado e pueril que, a meu ver, penalizava o próprio sistema de valores que, supostamente, se estava a celebrar. Além de que reconhecer a excelência do trabalho de Soderbergh não decorre de nenhum pressuposto "masculino", antes de um ponto de vista (discutível, não é isso que está em causa) visceralmente cinéfilo.

Ora, nesta paisagem social em que o esquematismo panfletário tende a desvalorizar o pensamento sobre o cinema, o filme de Fennell (também atriz, intérprete de Camilla Parker Bowles na série The Crown) distingue-se pela inteligência de evitar qualquer "militância" mais ou menos demonstrativa. E não há dúvida de que o argumento original, também de sua autoria, agora distinguido com um Óscar, é peça fundamental na dinâmica dramática do filme.

A exposição da estupidez machista, neste caso associada à violência de algumas personagens masculinas, é tanto mais eficaz quanto Uma Miúda com Potencial se distingue por um bizarro cruzamento de géneros, talvez nem sempre muito controlado, mas sugestivo, paradoxal, irónico e pleno de gravidade. Dir-se-ia que Fennell reencontra um certo espírito de comédia, ligado à herança de clássicos assinados por Billy Wilder ou Alexander Mackendrick (realizador do lendário O Quinteto Era de Cordas, título lendário da comédia negra britânica), por vezes atraindo algumas variantes do cinema de terror. Apetece aplicar uma frase feita: este é um filme dos nossos dias... Com a ressalva de que, desta vez, o gosto pelo cinema supera qualquer maniqueísmo mediático ou sociológico.

dnot@dn.pt

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