Moledo e a sua praia - recentemente destruída pelo mar - são os principais tópicos das crónicas de António Sousa Homem.
Moledo e a sua praia - recentemente destruída pelo mar - são os principais tópicos das crónicas de António Sousa Homem.

O eterno guarda-costas de Moledo

Pode-se classificar o cronista António Sousa Homem como um eremita que vive no litoral do Minho, culto e saudosista, que faz questão em manter 'Uma vida fora de moda'.
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A primeira crónica da nova recolha de textos de António Sousa Homem, volume intitulado Uma Vida Fora de Moda, termina com uma síntese de todas as elucubrações que se seguirão nas próximas 383 páginas e em apenas quatro palavras: “Recordações de um velho”. Como são raras e exclusivas as aparições públicas do autor, pouco se sabe dele através de declarações ou de entrevistas; resta a parca biografia que a cada nova coleção de crónicas se vai repetindo, sem grandes novidades: “Nasceu no Porto e vive atualmente em Moledo, no Minho, após ter exercido a profissão de advogado.” A partir desta súmula pouco mais há a descobrir sobre o prolífico cronista que desde o início deste terceiro milénio vem publicando as suas histórias em magazines, principalmente as de temática moledense, sendo que é delas que se podem extrair mais alguns detalhes de uma vida retirada, quase de eremita, como apregoa.

Há também uma particularidade política – ou social? - em cada subtítulo sempre repetido nas capas dos seus livros: a cândida expressão “Crónicas de um reacionário minhoto”. Conceito que pouco significará para a maior parte dos leitores portugueses atuais, menos dados a decifrar hábitos de gente enraizada pelo Portugal mais profundo ou já desentendido com a expressão “reacionário”, antiguidade verbal que tem vindo a perder cada vez mais significado apesar de ter recuperado em muito a sua essência socialmente nos últimos anos.

As novidades lusitanas dos últimos anos não têm afetado em muito a vida física e mental do autor, mesmo que António Sousa Homem não fuja ao determinismo e às circunstâncias de muitos dos seus semelhantes: “Um certo temperamento hipocondríaco fez de mim um amigo dedicado dos médicos”.  E, por certo, estas maleitas são em muito minoradas pela existência da praia de Moledo, a mais aristocrática do Minho, sem concorrência do lado do lado de lá da fronteira a não ser em petiscos próprios das rias galegas e as da povoação próxima de A Guarda, apesar de toda a gastronomia minhota ser rival à altura e muito comentada ao longo das crónicas. Não que a alimentação seja preponderante em toda esta digressão epistolar, a não ser no caso do Arroz de Pato da Tia Henriqueta, dos parcos pequenos-almoços de torradas e de café de cevada, em evocações do regresso do velho Jacinto à pátria tão bem ilustrada em A Cidade e as Serras, sem ignorar o apreciado Camilo Castelo Branco, a Dona Agustina e o Dr. Homem de Mello, e, porque não, Guerra Junqueiro!

Uma fotografia do autor António Sousa Homem, quase sempre pouco nítida.
Uma fotografia do autor António Sousa Homem, quase sempre pouco nítida.D.R.

Afinal, seja como for, António Sousa Homem está retirado em Moledo, de onde vai fixando para a história a terra - a aldeia e a praia - que define como eremitério. Não falta centímetro de paisagem enleada em sensações e emoções que não descreva ou em que reveja o percurso do seu pai, o velho Doutor Homem, membro que teve a felicidade de falecer no final de 1974, “tendo sobrevivido tranquilamente ao 25 de Abril”.  Sabe-se que as paixões paternais já não sempre seguidas pelas gerações mais recentes da família, como as de tempos tão históricos e bastante violentos das guerras liberais, da República nascida após a sangria real e da Democracia que seduz a sobrinha esquerdista Maria Luísa. Processos civilizacionais que vão percorrendo esta enciclopédia de verbetes moledenses e do Alto Minho e que fazem de Uma Vida Fora de Moda, um perfeito retrato de um Portugal que mais parece de imaginação.

Há um detalhe sobre António Sousa Homem que não é de menos, o de se resguardar do público enquanto autor. Não será uma Elena Ferrante, mas fica lá perto a nível de eclipsar a sua imagem. Recusa-se a enfrentar os seus leitores, situação que aconteceu ainda na semana passada quando convidou dois amigos para apresentarem este novo livro, Pedro Mexia e João Pereira Coutinho, e entregou a Francisco José Viegas a responsabilidade de ler a carta que enviou para as dezenas de interessados nesta recolha de crónicas agora lançadas.

O que leu Francisco José Viegas é um retrato muito bom deste “personagem”? Respingue-se umas ideias, a título de exemplo da prosa confessional do cronista: “É a terceira vez que escrevo esta carta sobre o mesmo assunto, o meu pedido de desculpas por não ter ido a Lisboa. A minha sobrinha Maria Luísa acha que isto se tornou um hábito e que as pessoas amigas mo desculpam porque sabem que sou praticamente inofensivo, uma espécie de tio-avô que, há vinte e cinco anos, foi desafiado a pegar na caneta — e que, por distração, aceitou o encargo.  

"Como se vê, tudo ou quase tudo na minha vida aconteceu há muito tempo. Por exemplo, a única vez que entrei no Corte Inglés foi há quarenta anos, em Vigo. Em Portugal existe a ideia de que devemos mudar as coisas, e mudá-las permanentemente — eu sou daqueles que prefere as coisas que não é necessário mudar -, o que se compreende num velho minhoto que já não tem contemporâneos.

"Esta semana, o mar arrastou um pouco da grande duna do areal de Moledo. Veio nos jornais. O tempo, como o mar, costuma arrastar-nos para recordações. A capa deste livro mostra um homem contemplando o mar. Esse homem não sou eu, mas poderia tê-lo sido noutras circunstâncias e há muito tempo, se formos revisitar as fotografias de antanho e certo fato que o meu alfaiate dos Clérigos copiou de uma revista inglesa.”

Ao terminar a leitura da carta de António Sousa Homem, Francisco José Viegas emocionou-se com as palavras que se seguiam: “Um dia, o mar arrastará também este livro, como as recordações dos familiares e amigos que vêm nas suas páginas, como bandoleiros românticos que resistem ao tempo.”

UMA VIDA FORA DE MODA

António Sousa Homem

Porto Editora

383 páginas

LANÇAMENTOS

SEIS DÉCADAS DE D.QUIXOTE

A editora D. Quixote está a celebrar seis décadas de atividade e decidiu reeditar igual número de romances que tenham sido grandes êxitos em cada uma dessas dezenas de anos. Além dos que aqui estão referenciados abaixo, serão reeditados também Os Filhos da Meia-Noite de Salman Rushdie, A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera e A Vegetariana de Han Kang. O Amor nos Tempos de Cólera é outro desses títulos e um dos maiores sucessos de Gabriel García Márquez, e o seu regresso era fundamental para que novos leitores descubram o realismo fantástico do autor colombiano, capaz de projetar literariamente um amor proibido durante meio século, deixando o leitor possuído pela construção da obra.

O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA

Gabriel García Márquez

D. Quixote

480 páginas

O SONHO DE PARIS

O protagonista do romance reencontra muitos anos depois a “menina má” de quando eram jovens e está encontrada a razão que impulsiona o romance a partir desse momento e a que o escritor Vargas Llosa se permita deambular por momentos políticos marcantes na história europeia e de outras regiões do mundo que interessam ao decorrer de um relato relativamente autobiográfico do escritor.

TRAVESSURAS DA MENINA MÁ

Mario Vargas Llosa

D.Quixote

366 páginas

O FIM DE UM TEMPO

Este romance de Sándor Márai tem tido várias reedições, não tantas que impedisse a sua inclusão nas celebrações do aniversário da editora D. Quixote, afinal o reencontro adiado de dois amigos com muito a contar um ao outro, em que o tempo quase tudo alterou, não podia deixar de resultar numa potente história.

AS VELAS ARDEM ATÉ AO FIM

Sándor Márai

D. Quixote

214 páginas

Moledo e a sua praia - recentemente destruída pelo mar - são os principais tópicos das crónicas de António Sousa Homem.
Richard Bueno Hudson: “A segunda língua materna mais falada no mundo não é o inglês, mas sim o espanhol”

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